sábado, 8 de setembro de 2018

AS HISTÓRIAS QUE RESIDEM NA GAVETA (1) - por José Ruy

Depois de "A vida interior das redações dos jornais infanto-juvenis", "HQ Arte com muita oficina" e "A Ilha do Corvo que venceu os piratas", José Ruy surge com novo conjunto de artigos no BDBD: "As histórias que residem na gaveta".
A ideia surgiu quando, há alguns meses, num artigo de Luiz Beira intitulado "Os álbuns encalhados", publicámos uma lista de álbuns que alguns dos nossos autores mais consagrados têm prontos mas que, por este ou aquele motivo, não foram ainda publicados. Nessa altura, José Ruy informou-nos que tinha dez(!) álbuns nessas condições!
Perante a nossa curiosidade, quanto aos temas tratados e quanto às razões para que esses projectos, até hoje, se mantivessem "na gaveta", surgiu a ideia de criar uma nova série de artigos, sugestão que José Ruy imediatamente acolheu, para nossa satisfação. 
Aqui veremos, em primeira mão, algumas pranchas (a maior parte delas na fase de esboço) que o autor mantém em "stand-by", com a esperança de um dia poder, quem sabe, desenvolver e transformar em álbum.
Um tema bastante interessante, que, tal como os anteriores, obterá, por certo, grande sucesso junto dos nossos fiéis leitores.
Vamos dar, pois, a palavra a Mestre José Ruy, sem perder mais tempo.
BDBD

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Nesta profissão de realizar Histórias em Quadrinhos acontece muitas vezes, por um motivo ou outro, os originais ficarem à espera de um editor que se interesse pelo tema, e ficarem adormecidos, numa gaveta, durante bastante tempo.
No meu caso, tenho dez Histórias nessas condições, e talvez seja curioso descrever os motivos que levaram à interrupção do seu acabamento, e em que ponto se encontra a realização de cada uma delas.
Como estes temas têm ficado inéditos, já me têm alertado para o perigo de os divulgar publicamente, e poderem desse modo serem aproveitados por outros.
Como segurança, sempre que faço um novo trabalho, e enquanto se encontra em esboço, registo-o, porque mesmo ao entregar a um editor, nunca sabemos quem passa na editora e poderá ver o original sobre uma secretária, e até sem querer, mais tarde sugerir a alguém a ideia, que teria visto não sabe já onde.
Desta maneira estou sempre defendido de plágios.
Posto isto, abro a gaveta e começo ao acaso por tirar esta história:
«Francisco de Almeida Grandella, uma Aventura sem Limites».
Um esquiço de Francisco Grandella e da fachada dos seus Armazéns Grandella,
 no Chiado em Lisboa.

Trata-se da história de um arrojado comerciante, republicano insigne, filantropo e benemérito.
Nas décadas de 80 e 90 do século XX, eu prestava a minha colaboração graciosamente em eventos organizados pela Biblioteca República e Resistência, instalada na altura no Bairro Grandella, na Estrada de Benfica em Lisboa, precisamente mandado construir por este comerciante para alojar os seus empregados e famílias.
Uma parte do Bairro Grandella.

Esse facto levou-me a projetar fazer em Quadrinhos a sua vida.
Documentei-me devidamente e apresentei a ideia ao meu editor, que pensou propor à Empresa que na altura explorava a casa Grandella, o «Printemps», uma aquisição de exemplares da obra para oferecerem a Bibliotecas e Escolas, no sentido de uma maior divulgação da obra deste homem notável.
Essa aquisição logo à saída da máquina amortizaria a despesa de produção e tornaria assim viável a edição comercial para ser distribuída pelos postos de venda do país.
Comecei a narrativa pela chegada a Lisboa do jovem Francisco Grandella, para trabalhar numa «loja de panos».
Esboço das páginas 1, 2 e 4 da história.

O meu método de trabalho consiste sempre em esboçar toda a história, com as legendas, podendo assim ser apresentada a editores e promotores, quando os há.
A seguir a essa fase, com a história aprovada, desenho os originais em definitivo.
Isto dá-me a vantagem de distribuir previamente a ação pelas páginas disponíveis que compõem o livro.
Páginas 13, 23 e 28. O livro está estruturado para ter 32 páginas.

O esboço é informal, mas suficiente para mostrar a implantação das imagens nos planos das páginas, a sua força e a fluência da narrativa.
O «Printemp» ficou muito interessado com o projeto, mas pouco tempo depois entrou em falência e essa hipótese ficou posta de parte.
O editor tentou ainda outras possibilidades, mas em vão, e esta história tem ficado na gaveta até hoje, e possivelmente por muito mais tempo por falta de iniciativa editorial.

No próximo artigo:
A «História da Bulgária em HQ»


José Ruy

4 comentários:

  1. Caríssimo José Ruy

    Ainda há pouco, em correspondência digital com um outro grande desenhador português - e sei que é um amigo comum -, afirmei que os autores de banda desenhada são, tal como acontece em outras artes (como no cinema) realizadores gráficos. A eles (a nós) cabe engendrar, a solo, os enquadramentos de acordo com o argumento próprio, a tomada de vistas, a elaboração dos "actores" na sequência desenhada(filmada), a conjugação do enredo, os trajes e todo o décor. "Realizador Gráfico" é uma boa designação!
    Escrever um texto de ficção, bem ou mal, há por aí muito quem o faça; passar ao desenho todo esse enredo, sintetizá-lo em vinhetas sequenciais, isso já é menos abundante.
    Também tenho muitas obras inacabadas e nas prateleiras dos armários. Não espero editor porque já me deixei disso e não imploro para que o prelo as passe ao papel. Estão lá, já foram lidas por mim e, se me der na veneta, visto o fato de editor e lanço-as para meia dúzia de interessados.
    O caso do José Ruy é mais sério. Trata-se de um autor de referência com uma grande obra (grande em termos de número e de qualidade), pelo que é lesa-arte deixá-la no limbo dos esquissos.
    Enfim, também serve de desabafo este meu comentário. Repetindo o que disse num email ao autor com que troquei correspondência, desenho para mim, fundamentalmente porque tenho este vício entranhado, necessito dele como "remédio" e não quero perder "a mão".Trabalhar em desenho e texto é um remédio que vou tomando, por vezes em doses cavalares, sem receita médica.

    Fica o meu desejo de o José Ruy ter esses 10 álbuns editados e serei certamente um adquirente fiel de qualquer deles.

    Santos Costa

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  2. Meu caro e distinto colega Santos Costa, muito agradeço as suas palavras e o cuidado de as escrever sempre depois de uma leitura/visão do trabalho em questão. Estou de acordo consigo quanto ao «realizarmos» este trabalho primeiro para nosso gozo pessoal, mas o facto é que esta arte é comunicação, e se não chega ao público alvo, não funciona. Os especialistas franceses, que percebem disto, dizem que uma narrativa sequencial só é considerada a partir da sua publicação. Sou um privilegiado pela quantidade de álbuns editados, e a razão de ter esta dezena no «limbo» é porque quando me entusiasmo com um tema, não espero ordem para publicação, avanço logo, pois com algo já feito, melhor se pode convencer um editor e algum promotor. Mas nem sempre resulta, e é preciso funcionar como a aranha, refazer constantemente a teia, sem desânimo nem amargura. tive uma história 8 anos (oito anos) na gaveta, pronta, e de repente apareceram dois editores que se interessaram e editaram o livro. É preciso paciência. Desejo que consiga também ver realizados os seus trabalhos «encalhados», como diz o amigo Luiz Beira. Forte abraço e grato, mais uma vez, pelas suas simpáticas palavras.
    José Ruy

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  3. A maioria dos editores da nossa praça só publicam BD estrangeira ou, então, esperam arranjar algum subsídio ou parceria para se resolverem a publicar também autores nacionais. José Ruy, felizmente, já conta na sua longa carreira com um acervo considerável de álbuns editados, mas merecia muito mais... dado que, ao contrário de outros autores, nunca parou de trabalhar, desiludido ou desanimado com as dificuldades e os condicionalismos do nosso meio editorial.
    Esta nova série de artigos que escreveu para o BDBD vai dar a conhecer, para gáudio de todos quantos o admiram, outros trabalhos da sua lavra, inéditos e recheados de interesse, como a história de Francisco Grandella, que talvez um dia despertem o interesse de um editor consciencioso que não pense apenas no lucro imediato, mas no alcance cultural que as obras de José Ruy têm e faça aquilo que todos os editores devem fazer: apoiar os seus autores, de todas as formas imagináveis, desde logo contactando, no caso de obras didácticas, as entidades públicas e privadas mais abertas à cultura, quando não têm arrojo para avançar sozinhos. Dá um bocado de trabalho, lá isso é verdade, mas em todo o caso não tanto como realizar um álbum de Banda Desenhada como os de José Ruy. E eu pergunto: já alguma das suas obras, mesmo não patrocinada, deu prejuízo aos editores?
    Estamos fartos de super-heróis e quejandos que inundam as bancas e as grandes livrarias, obras de pura diversão que se lêem e esquecem num instante. Há lugar para todos, evidentemente, mas a desproporção é enorme entre a quantidade dessas obras de consumo rápido, que se espremem e não deitam "sumo", salvo raras excepções, e o escasso número de álbuns portugueses editados anualmente. O que prova que as revistas de BD, extintas há muitos anos, são o melhor veículo para apresentar o trabalho dos autores, não deixando que obras válidas fiquem na gaveta.
    Muito obrigado, Mestre José Ruy, por continuar a ser um lutador que não recua perante os obstáculos e um obreiro infatigável, sempre dedicado à sua vocação artística, e por agora nos vir dar generosamente a conhecer outros tesouros criados pelo seu talento e pelas suas mãos... que mesmo em esboço encantam quem tenha olhos para apreciar a verdadeira Arte.
    Um grande abraço,
    Jorge Magalhães

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  4. Meu caro amigo Jorge Magalhães, venho agradecer as sentidas palavras que escreveu. Grato pelo reconhecimento, mas tudo o que faço é por gozo próprio com o sentido de dar a conhecer ao público algo que me parece merecer a pena.
    Respondendo à questão que apresenta, se algum dos meus livros deu prejuízo; pois nem o que editei eu próprio, o «Infante Don Henrique» em 1960, deixou de dar lucro. Acontece, que duas mentes perversas disfarçadas de «críticos» da nossa praça, inventaram uma atoarda, há uns anos, de que a minha coleção «Bomvento» tinha causado grande prejuízo nas Edições ASA. A prova do contrário, é que essa coleção de 8 volumes, foi toda reeditada pela editora e voltou a esgotar em pouco tempo. Se os meus livros não se vendessem, os editores não me aceitavam novos títulos. E tenho as minhas obras espalhadas por vários editores. Esclareço que o apoio às minhas obras, significa um contributo de entidades que adquirem à saída da máquina uns tantos milhares de exemplares para colocarem em bibliotecas e escolas, o que permite ao editor fazer uma tiragem alargada para distribuir por todo o país. Não totalmente cobertas. Estes livros estão sempre patentes nas livrarias, e os mais antigos podem ser encomendados nos postos de venda ou directamente ao editor. O meu editor está a programar neste momento reedições dos títulos que se encontram praticamente esgotados.
    Forte abraço de amizade e admiração
    José Ruy

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