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Manuel Caldas |
Nascido em 1959, Manuel Caldas deu-se a conhecer ao mundo da BD em
1986, quando lançou o primeiro número do fanzine "Nemo", a que se
seguiram outros títulos: "Zero", "The ‘Nemo’ Booklets of Classic
Comics" e "Sunday Comics" (todos eles muito elogiados pelos
conteúdos e pelo cuidado aspecto gráfico que apresentavam, uma característica
que já nessa altura ressaltava no trabalho de Caldas).
É por muitos considerado (incluído ele mesmo) como o maior
especialista na obra-prima de Hal Foster , Príncipe Valente, sendo
autor de um livro (Foster e Val – Os
Trabalhos e os Dias do Criador de ‘Prince Valiant’, do qual a editora
Dólmen publicou uma tradução espanhola) e de vários artigos sobre esta monumental
banda desenhada (espraiados por fanzines, jornais, revistas ou álbuns BD), onde
denota profundo conhecimento e enorme devoção pela série.
O seu contributo à obra de Foster, contudo, não se ficou por aqui,
bem pelo contrário. Com uma dedicação e
uma paciência ímpares, próprias de quem ama aquilo que faz, Manuel Caldas
restaurou meticulosamente as páginas de Príncipe Valente, que
durante anos recolheu e coleccionou com persistência, e propôs-se edita-las em
vários tomos, com um nível nunca antes atingido, pondo, finalmente, ao dispor
dos leitores a maravilhosa arte de Foster, em todo o seu esplendor.
Em 2005, deixou de lado o emprego (era auxiliar de acção
educativa) para fazer aquilo que, verdadeiramente o preenchia: sob o selo "Livros
de Papel" (“Libri Impressi” depois), passou a dedicar-se profissionalmente
à edição de livros de banda desenhada e ilustração.
Sob o selo “Livros de Papel” se iniciou a publicação de Príncipe
Valente. Todavia, após seis volumes e um desentendimento
irreversível com o sócio que o acompanhava nesse projecto, viu-se privado de
poder continuar a publicar em português.
Contornou, de alguma maneira, o problema publicando versões da
obra-prima de Foster em espanhol, granjeando enorme sucesso.
Nos últimos anos, tem-se dedicado, também, ao restauro e à edição
de outros clássicos americanos igualmente famosos como Lance (de
Warren Tufts), Tarzan (de Russ Maning), Cisco Kid (de
José Luis Salinas) ou Hägar (de Dik Browne).
Recentemente lançou, num só volume, A Lei da Selva e Bodas
Índias, duas pérolas de Eduardo Teixeira Coelho que restaurou e decidiu
publicar “por amor à Arte”.
Pretende, um dia, entre imensas outras coisas, editar a série Ragnar, também de E. T. Coelho.
Acedeu a dar-nos esta entrevista, onde nos focámos, como não
poderia deixar de ser, na relação de Caldas com o personagem-ícone de Foster, Príncipe Valente.
Por ser demasiado extensa para publicar de uma só vez, dividimo-la em duas partes, das
quais publicamos hoje a primeira; a segunda ficará disponível nos próximos
dias.
Boas leituras.
CR
BDBD - O Príncipe Valente foi sempre o seu
personagem de eleição ou já tinha começado a ler e a interessar-se por BD com
outros heróis/séries?
Manuel Caldas (MC) - A banda desenhada
começou a atrair-me lá pelos cinco, seis anos, mas, tal como escrevi no meu
livro Foster e Val, a paixão pelo Príncipe Valente só brotou, e de forma
arrebatadora, pouco depois de fazer onze anos, quando, coleccionando eu o
suplemento dominical de O Primeiro de
Janeiro por causa das pranchas de Walt Disney, o meu pai me chamou a
atenção para a qualidade dos desenhos de Príncipe
Valente, que aparecia também no mesmo suplemento, a cores. Até então, a
série do Foster só me tinha chamado a atenção porque “era uma história que nunca
mais chegava ao fim”, mas a observação do meu pai, tão simples e espontânea,
levou-me a olhar para ele com atenção e, num instante, a, pode dizer-se, mudar
a minha vida.
BDBD - O que faz com que, na sua
opinião, o Príncipe Valente seja uma
obra diferente das outras?
MC - Como a minha opinião é a mesma do bom e
velho João P. Boléo mas com palavras ele sabe exprimi-la melhor, leio o que ele
escreveu num artigo publicado na revista do Expresso
de 17 de Março de 1990: “Príncipe Valente
é (…) uma das mais maravilhosas e monumentais BD’s de sempre, e uma
daquelas em que é mais perene o prazer visual e literário, o gosto de ver e de
ler (…), sendo o Príncipe Valente obviamente
sério candidato à BD mais bem desenhada de sempre (…). Foster (…) criou uma
série em muitos aspectos inovadora e precursora, globalmente única. Com um
traço minucioso e de uma extrema elegância e delicadeza, grande sentido
arquitectónico e paisagístico e um cuidadosíssimo rigor documental, a beleza
clássica de cada ‘quadradinho’ não só tem uma dinâmica interna que permite
falar com frequência em ‘vinheta-sequência’ como se inscreve numa harmoniosa sucessão
narrativa em que texto e imagem se complementam, por vezes ironicamente, sem
qualquer redundância. (…) Acompanhamos assim uma epopeia que se desenvolve
lenta e sumptuosamente, não em episódios independentes, mas no contínuo fluir
dos momentos de uma vida no seu todo orgânico, enquadrada pelos ciclos da
Natureza que Foster conhecia tão profundamente, em que os personagens crescem,
amam, têm filhos, lutam, trabalham, divertem-se, sofrem, envelhecem, têm uma
psicologia elaborada e de dimensão humana, nunca totalmente bons ou maus, com
medos e valentias, ternuras e superstições”.
BDBD –
Percebe-se que todos estes motivos o tenham levado a iniciar a sua colecção de
revistas, álbuns e livros sobre a série… Teve logo, nessa altura, a curiosidade
de saber como nascera o Príncipe Valente,
quem o desenhava, onde se publicava, enfim, saber algo mais do que simplesmente
ler as aventuras do personagem?
MC - Essa curiosidade pelos bastidores, tanto
quanto me lembro, sempre fez parte de mim. E graças se dêem a Vasco Granja, no Tintin, e a Roussado Pinto, no Jornal
do Cuto, por terem sabido
alimentá-la abundantemente. Claro, nos anos 70 não havia nem a facilidade de
acesso à informação nem a abundância que há hoje com a internet, mas aquelas
pessoas e aquelas revistas fizeram um trabalho extraordinário (apesar de a Roussado
Pinto faltar o pudor para não inventar o que não sabia…).
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Manuel Caldas com algumas páginas de jornais norte-americanos da sua colecção |
BDBD – Quando
passou, mais tarde, a coleccionar páginas de jornais norte-americanos onde a
série se publicava, sonhou sempre completar essa colecção ou, a princípio, isso
não lhe passava sequer pela cabeça, atendendo à previsível dificuldade da
tarefa?
MC - Quando me meti na compra das enormes
páginas de jornais americanos não foi para fazer uma colecção completa mas sim
para tapar lacunas.
É que, na altura, já tinha, umas partes numa língua e
outras noutras, todo o Príncipe Valente do Foster, mas, por outro lado,
havia constatado que na sua maioria as pranchas não se encontravam
correctamente reproduzidas em edição alguma. Era preciso, portanto, recorrer
aos jornais em que primeiramente se publicaram.
BDBD -
De uma maneira geral, a impressão dos jornais norte-americanos da época era
"boa", atendendo aos meios existentes na altura?
MC - Era muito variável, podendo ir do
bastante mau ao muito bom, consoante as máquinas de impressão que se usavam,
pois uma mesma página de uma banda desenhada podia aparecer simultaneamente em
dezenas ou centenas de jornais dos Estados Unidos. Mas, por muito boa que fosse
a impressão, o papel de jornal e a própria técnica de impressão (que não era a
mesma das revistas) limitava sempre o resultado.
BDBD –
Ao longo dos anos, a pouca qualidade na impressão da série, bem como as
adulterações sofridas pela mesma em algumas publicações (com cortes e
acrescentos, como era usual na época), foram suficientes para o convencer a
restaurar e editar o Príncipe Valente
com a excelência com que o fez, ou existiram outros factores que também
contribuíram para isso?
MC - Sim, foram esses os factores. Era
necessário publicar as páginas com a melhor qualidade possível. Mas é
interessante constatar como, apesar de ser na maior parte das vezes pobremente
reproduzidos, os desenhos de Hal Foster não perdiam a capacidade de deslumbrar.
E é que houve imensas edições em que foram tratados abaixo de cão!
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O Príncipe Valente, conforme foi publicado no "Mundo de Aventuras" |
BDBD -
Quais foram os maiores “atentados” que a obra de Foster sofreu, na sua opinião?
MC - Todos aqueles que sofriam as histórias
aos quadradinhos noutros tempos: cortes nas vinhetas, acrescentos, supressões,
recoloridos horrendos, traduções condensadas. Ainda mais grave foram as edições
que a partir dos anos 70 se fizeram apresentando-se como de “luxo” e sendo
absolutamente más, como o 2.º volume da SERG e a maior parte dos álbuns das
Ediciones BO. E os volumes mais recentemente publicados em Portugal, com o
período de 1949 a 1954, merecem a mesma classificação.
BDBD -
Quais são as maiores dificuldades que encontra quando restaura uma página de
banda desenhada?
MC - Uma imagem cujas linhas sejam espessas,
firmes e sumárias, é trabalho fácil, o que não significa que seja rápido. Estão
neste caso as de The Kin-Der-Kids,
que, no entanto, me custou cada uma dois dias em cheio. Já o Príncipe Valente ou o Cisco Kid são coisas muito mais
difíceis, pela variedade de espessura das linhas e também porque têm tramas
cujos pontinhos, quando estragados, não podem ser substituídos
desordenadamente. E quando no meio das tramas estragadas, quase transformadas
numa mancha negra, há linhas, o restauro pode ser impossível. Por outro lado,
restaurar a cor é mais fácil do que restaurar as linhas.
BDBD -
Há espaços que tem de recriar intuitivamente (quando a página tem um rasgão ou
uma mancha, por exemplo)? O que faz, nessas situações?
MC - Uma coisa é restaurar, outra é recriar.
Procuro nunca ter de recriar nada, e quase nunca o fiz, e quando o fiz foi numa
porção pequena do desenho. Ou seja: se me vejo na necessidade de recriar,
prefiro atrasar o trabalho e procurar material em melhores condições.
BDBD –
Bem sei que cada caso é um caso mas, em média, quantas horas leva a restaurar
uma prancha?
MC - Quando partia de material sofrível do Príncipe Valente, esforçava-me por
completar uma página por dia (treze, catorze horas) e na maior parte das vezes
conseguia. Foi assim que aconteceu, por exemplo (lembro-me especialmente, pois
tinha imposto a mim mesmo uma meta) com o volume de 1951-52 produzido para a
edição uruguaia. Agora tenho material que permite uma restauração excelente
(graças a Deus!) e consigo completar uma prancha em menos de metade do tempo.
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Capa de "El Santo y el Ogro", 12.º volume de Príncipe Valiente (1959-1960) |
BDBD –
Em relação às capas dos álbuns, que critérios usa para escolher as gravuras?
MC - Não sei explicar. Sei que tem de me
agradar, claro. O que desde o princípio tentei é que as capas fossem melhores
do que costumavam ser em todas as edições que por todo o lado se faziam. A do
volume português correspondente ao ano de 1941-42 até a desenhei (e colori) no
tamanho de uma folha de cartolina.
BDBD -
O que sente quando termina o restauro de um álbum e o coloca à venda?
MC - Quando comecei com a edição portuguesa, nessas
ocasiões sentia um grande entusiasmo e alívio, e a vontade de descansar algum
tempo antes de me meter no seguinte. Agora e desde que passei a viver só da
edição já não há nenhuma emoção especial. Quando termino um livro, já tenho
outro em mãos e nem me dedico devidamente à promoção do que acabei. Quase
sempre até deixo passar o prazo que a gráfica fixa mas quase nunca cumpre para
a entrega do livro, e só começo a pressioná-la fora de tempo.
BDBD -
Creio que, hoje em dia, a série continua a publicar-se. Mesmo tendo em conta a
enorme responsabilidade que terá sido substituir um gigante como Foster, que
opinião tem acerca do trabalho que os seus continuadores realizaram?
MC - Sim, a série continua, por autores de
cujos nomes agora não me lembro nem vale a pena averiguar. Príncipe Valente deveria ter morrido com o seu criador, e como ele
mesmo planeara em anos anteriores. Mudou de opinião quando a velhice já não lhe
garantia a necessária lucidez de espírito e quando o corpo já necessitava dos
cuidados que ele pensou que só seriam garantidos com o dinheiro resultante da
venda da sua obra e do direito de a explorarem. O que os seus continuadores
fizeram e vão fazendo é, no mínimo, indigno do título Prince Valiant.
BDBD – Foster
deixou algum registo, falado ou escrito, sobre a forma como teria planeado terminar
com o Príncipe Valente?
MC – Fala disso em mais do que uma
entrevista. Diz que numa altura da sua vida tinha tudo planeado: numa grande
batalha morreriam todos os cavaleiros do rei Artur, incluído Val. Depois mudaria
de ideias, tencionando levar Val à velhice e passando o protagonismo para o
filho dele. Quando decidiu reformar-se e passou a apenas escrever, sendo os
desenhos feitos por John Cullen Murphy, a sua ideia continuou a ser a certa
altura pôr fim à serie, mas compreendeu que tendo Murphy a seu encargo um
grande número de filhos não estaria bem privá-lo do seu ganha-pão.