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Luís Afonso (Foto: Miguel Madeira) |
Luís Afonso é um dos mais reconhecidos cartunistas portugueses da actualidade.
Nasceu em Aljustrel, em 1965, estudou em Lisboa mas reside em Serpa.
Depois de formar-se em Geografia, abdicou da carreira de docente para se dedicar por inteiro à publicação de cartunes e tiras BD na imprensa.
A partir daí, nunca mais parou de produzir "bonecos", em jornais e revistas como o Diário, Diário do Alentejo, A Bola, Público, Público Magazine, Grande Reportagem, Sol ou Jornal de Negócios, até ultrapassar os 20.000 cartunes publicados!
Apesar deste número astronómico, todos sabemos que a qualidade do seu trabalho não esmoreceu. Pelo contrário. Parece que, cada dia que passa, reforça o seu estatuto, deixando provavelmente a Sr.ª Merkel a pensar com os seus botões: "Este tipo é tão produtivo que até parece alemão!"
Em compensação, muitos portugueses pensarão: "Este tipo é tão produtivo que nem parece alentejano!"
Desafiá-mo-lo para uma entrevista, sem pressas e sem qualquer compromisso quanto a datas para nos dar as respostas. Não por ele ser alentejano, claro, mas de modo a deixa-lo à vontade e não prejudicarmos o seu plano de trabalho diário.
A verdade é que, apenas duas semanas depois, aqui está a entrevista do Luís Afonso. Fresquinha, portanto, para combater o calor que se faz sentir.
Aproveitem-na bem.
BDBD - Tens o curso
de geógrafo mas ganhas a vida a fazer cartunes e tiras de Banda Desenhada. Como surgiu esta "mudança de direcção" na tua
carreira?
Luís Afonso (LA) - Aconteceu por
acaso. Sempre desenhei as minhas histórias de BD, mas como hobby. No primeiro
ano de faculdade, em 1984, publiquei uma BD num suplemento de um jornal. Quando
lá fui buscar as pranchas originais, no princípio de 1985, perguntaram-me se não
queria fazer um cartune semanal, coisa que eu nunca tinha pensado, eu nem
ligava muito a cartunes, confesso. Experimentei e desde essa altura nunca mais
parei.
BDBD - Quando é que
sentiste que, verdadeiramente, eras um cartunista e que era isso que querias
fazer na vida? Foi um sentimento que te acompanhou logo que publicaste os
primeiros desenhos ou foi aparecendo gradualmente, até encetares a tempo inteiro
por essa actividade?
LA - Talvez só me
tenha sentido verdadeiramente cartunista quando percebi que tinha de optar
entre dar aulas de Geografia e trabalhar a tempo inteiro nos cartunes. Foi em
1993, quando comecei no Público. Como já colaborava n’ A Bola e na Grande
Reportagem, começaram a ser coisas a mais, porque a profissão de professor é muito
desgastante com as aulas, a preparação das aulas, a correcção dos testes, as inúmeras
reuniões de professores, do Conselho Pedagógico, etc, etc. Ainda consegui
conciliar dois anos, mas abandonei o ensino em 1995. Fiquei com pena, mas vou
matando saudades quando me convidam para ir a escolas.
BDBD - Quem opta por
fazer cartune tem sempre algumas referências que o acompanham para sempre. Quem foram, ou são,
os cartunistas que mais admiras, que te despertaram o “bichinho” e te fizeram
pensar em seguir-lhes os passos?
LA - Como te
respondi atrás, comecei a fazer cartunes por acaso, sem estar ligado
minimamente a esta área. Portanto, para o melhor e para o pior, comecei sem
referências nenhumas. Conhecia o que toda a gente conhecia: a Mafalda, os
Peanuts, o Mordillo, mais nada. Em Portugal só conhecia o Sam, do "Guarda
Ricardo", porque na minha terra (Aljustrel) ia todos os dias a uma sociedade
recreativa que tinha o Diário de Notícias na sala de leitura. E eu lia o
Sam, mas sem me passar pela cabeça vir a
fazer aquilo no futuro. Conheci-o mais tarde e, já numa perspectiva de jovem
cartunista, admirava bastante o seu trabalho. Foi sem dúvida quem mais me
marcou, sobretudo pela arte de fazer cartunes com a prevalência do texto. Foi
uma grande responsabilidade ocupar o lugar que ele deixou no Público.
BDBD - Como te
surgem as ideias para os cartunes? É algo que nasce espontaneamente ou requer
da tua parte muito tempo de pesquisa e de concentração?
LA - Depende dos
casos. Tanto me pode surgir uma ideia de repente como ter de andar um dia
inteiro a pesquisar notícias na net para trabalhar. Mas a actualidade é tão
fervilhante que às vezes tenho mais trabalho a decidir sobre qual a ideia que
vou utilizar no cartune do que propriamente a encontrar uma.
BDBD - Qual foi o
projecto, ou a série, em que trabalhaste que mais prazer te deu até hoje?
LA - É difícil dizer
qual foi o projecto/série que me deu ou dá mais prazer, de uma forma ou de
outra tenho tido prazer nos vários projectos e séries em que tenho trabalhado.
Desde o Barba e Cabelo, com o qual consegui pôr uma tira diária sobre
desporto/futebol na imprensa, o que não era nada comum na imprensa desportiva,
e que já tem mais de 25 anos...
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"Barba e Cabelo", in jornal "A Bola" |
...passando pelo Bartoon (que continua a ser um
desafio estimulante todos os dias, desde 1993)...
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"Bartoon", in jornal "Público" |
...até à tira SA (2003), no Jornal
de Negócios, que me permitiu entrar a fundo no mundo da Economia e Finanças
numa altura em que o Mundo tem atravessado a maior crise económica e financeira
dos últimos cem anos.
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"SA", in "Jornal de Negócios" |
...E há os outros projectos, como o Lopes, o escritor pós-moderno, que começou na Grande Reportagem em 1991...
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"Lopes, Escritor Pós-Moderno", in "Grande Reportagem" |
...a série
de animação A Mosca, que foi transmitida durante seis meses na RTP 1, em 2014...
...ou a tira RIbanho para o Diário do Alentejo, em que eu fiz os textos e tu os desenhos durante cerca de 10 anos, até 2012.
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"RIbanho", in "Diário do Alentejo" |
BDBD - Tens algum
tema que nunca tenhas trabalhado em que gostasses de pegar?
LA - Assim de
repente, não me ocorre nada. Se calhar até já peguei em coisas a mais.
BDBD - Disseste-me
um dia que gostas mais de escrever do que desenhar. No entanto, só tens um
livro publicado (“O Comboio das Cinco”). Tudo o mais (e não é pouco) são
argumentos para cartunes, tiras ou pequenas bandas desenhadas de poucas
pranchas. Porquê?
LA - Já acabei um
segundo livro só de texto. São seis contos e, em princípio, será lançado ainda
antes do fim do ano pela Abysmo, que já me editou “O Comboio das Cinco”. E já estou com mais projectos a esse nível.
Como sabes, e tu tens conhecimento directo, cada vez me dá mais gozo escrever.
BDBD - Como se
conseguem fazer dois ou três
cartunes por dia, sete dias por semana, durante anos a fio? Isso não é viver em
permanente "stress"? Deve haver alturas em que estejas,
porventura, sem inspiração, ou de férias, ou ocupado com qualquer imprevisto que possa surgir, ou por outra razão
qualquer, e não te surjam ideias facilmente… Como resolves essas situações?
LA - Tenho de
trabalhar todos os dias. Dantes ainda arriscava fazer meia dúzia de cartunes
adiantados para ir passar uns dias de férias, mas não dá resultado: a
actualidade é frenética de mais e não tem contemplações com atrasos na
abordagem dos acontecimentos. Percebi que era pior retomar o trabalho do que continuar
a fazê-lo, mesmo de “férias”. Assumi que trabalho todos os dias e não deixo de
sair por isso. A minha família habituou-se a que eu trabalhe todos os dias. Felizmente a tecnologia actual permite-me fazer isso, consigo ler a informação
e enviar os cartunes de qualquer parte.
BDBD - Tens ideia
(ainda que por alto) de quantos cartunes já publicaste até hoje?
LA - De certeza mais
de 20.000, talvez 25.000.
BDBD - Há alguns
anos, dizias numa entrevista que esta actividade é muito desgastante e que o
cartunista consome muita energia enquanto pensa e realiza o seu trabalho.
Consegues ver-te, daqui por vinte anos, a fazer o mesmo que fazes hoje - dois
ou três cartunes por dia -
ou sentes que, com o tempo, terás, irremediavelmente, que abrandar o teu ritmo?
LA - Sinto que não
devo fazer previsões porque podem falhar. Assim como as dos economistas. Mas
ver-me vivo daqui por vinte anos já não era mau.
BDBD - Como vês a situação actual do cartune de imprensa em Portugal?
LA - A situação mantém-se
tristemente estável. Somos praticamente os mesmos de sempre. É pena não haver
espaço na imprensa para aparecerem novos nomes.
BDBD - A que achas que isso se deve?
LA - Há dois motivos, um interno e que vem de trás, outro externo e mais recente. O primeiro tem a ver com o facto de os jornais portugueses nunca terem tido a tradição de manter nas suas páginas vários cartunistas em simultâneo, ao contrário do que se passa noutros países. Tu pegas num grande jornal francês, inglês, norte-americano, brasileiro ou espanhol e encontras vários autores a coexistir, cada um com o seu estilo. Estar lá um não impede que estejam outros, como estar um colunista não impede que estejam outros. Aqui em Portugal há no máximo dois cartunistas por jornal. É o caso, por exemplo, de A Bola. Estou lá eu e o Ricardo Galvão. Ele mais virado para a caricatura e cartunes puramente gráficos, eu dedicado às tiras/cartunes onde predominam as palavras. Dois estilos completamente distintos e compatíveis. Mas o Ricardo não faz todos os dias e nos países que referi há vários cartunes por jornal todos os dias, portanto são realidades que nem se aproximam. Em tempos defendi a ideia de que os prémios para cartunes, em vez de servirem só para premiar os consagrados (eu fartei-me deles, deixei de participar já há uma dúzia de anos e mesmo assim tenho uma gaveta cheia de estatuetas horrorosas que não mostro a ninguém) deveriam apostar na revelação e publicação de novos talentos. O prémio pecuniário, em vez de se destinar a um veterano, serviria para manter um espaço semanal (ou diário, se o dinheiro fosse suficiente) num ou mais jornais para publicar novos autores. Desses, os que se destacassem poderiam ser convidados a trabalhar nesses jornais. Era uma forma de deixar que o talento aparecesse (porque ele existe, só que não tem espaço para se mostrar). Quanto ao outro motivo, o externo, é a crise que a imprensa atravessa, com o aparecimento da informação gratuita na internet, ainda por cima agudizada pela crise económica, o que faz com que, mesmo que o primeiro motivo não existisse, fosse difícil para os jornais contratarem mais autores.
BDBD - Que conselho
dás a um jovem que queira iniciar-se nesta
carreira?
LA - Que pense duas
vezes antes de se iniciar. Não, três.
CR
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"Histórias Invertebradas", in "Público Magazine" |
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"Barba e Cabelo", in jornal "A Bola" |
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"SA", in "Jornal de Negócios" |
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"Bartoon", in jornal "Público" |
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"Humor Ardente", in jornal "A Bola" |
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"Lopes, Escritor Pós-Moderno", in "Grande Reportagem" |
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"Lopes, Escritor Pós-Moderno", in "Grande Reportagem" |
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"O Sol aos Quadradinhos", in jornal "Sol" |