terça-feira, 14 de junho de 2022

ILUSTRAÇÕES E HISTÓRIAS EM QUADRINHOS por José Ruy (13)



Continuo agora a mostrar as ilustrações ainda inéditas de um livro por publicar, as Novelas d’O Mosquito, de José Padiña (que usava sempre pseudónimos e nunca o seu nome verdadeiro) e que não tinham sido ilustradas. O Teixeira Coelho nessa altura estava já dedicado a fazer Histórias em Quadrinhos e não tinha tempo para as ilustrações das novelas.
Desta vez o ETCoelho dignou-se fazer apenas o cabeçalho. Junto os esboços que ele ensaiou, por curiosidade.
O Padiña usou nesta novela o pseudónimo «Peter Tenerife».

Vamos à história: contarei a traços largos, mas de modo a poderem compreender o que representam as ilustrações.
Palavras de Padiña:

Foi um velho, muito velho, quem me contou esta história. Tinha-a ouvido do avô dele, e o avô também a ouviu do avô respetivo: segundo depreendi pelos pormenores, cheguei à conclusão de que tudo acontecera em Goa, durante o século XVIII. Mas se não foi precisamente em Goa, pelo menos foi em qualquer cidade da Índia Portuguesa. E quanto à época, é que não me restam dúvidas.
Rara era a noite em que os seus salões se não iluminavam com milhares de lanterninhas chinesas e se não enchiam de convidados.

Ora, numa dessas festas, aconteceu que ...
Em certo recanto onde o bulício das gentes incomodava menos, estavam dois jovens conversando.
- Não me parece bem que nós, cristãos, possamos manter-nos indiferentes perante este problema das «castas». O que me revolta sobretudo é a degradação dos párias. Entre as outras castas, as diferenças são grandes, e isolam-se cada uma dentro do seu círculo, enfim, não há caridade, mas também não há grande agressividade.
Assim falava aquele jovem que tinha o ar mais grave e triste. Vinha com o grupo uma mocinha, chamava-se Florinda, e era a noiva de Daniel.
Achou que também devia fazer um comentário: 
- Desconfio que tem projetos de transformar a nossa casa em convento.
Daniel mirou a noiva de soslaio, e respondeu:
- Bem melhor era que as cabeças ocas não tivessem boca, para nós não percebermos o vazio delas...
- Isso quer dizer que me chamas idiota, não é?
- Exatamente.

Balsemão Geraldes, (o de bigodinho no desenho) como superelegante que era, precipitou-se a defender a ofendida.
Avançou - meneando-se - e engrossando a voz desafiou-o:
- Neste momento, senhor D. Daniel de Outeiro, eu represento o meu pai para vos dizer que em nossa casa não se consente o insulto a uma senhora. Façam o favor de sair!
Fabrício adiantou-se e desembainhou a comprida espada.
- Vós não me conheceis ainda. Cheguei ontem de Portugal. Chamo-me Fabrício Cecílio, Fabrício, o espadachim...
Daniel não se demorou a empunhar a sua lâmina e a colocar-se ao lado de Fabrício, que ripostou serenamente:
- Sim, sairemos. Mas antes quero aumentar os bordados dos vossos lindos fatos.

Balsemão esquivou desastradamente o primeiro golpe de Fabrício, gritando a senha «S. Sebastian y amor», que era o convite para os seus amigos acudirem. Seriam pelo menos uns vinte. Daniel, que era mais um homem de gabinete, limitou a sua ação a proteger as costas de Fabrício. Este, pelo contrário, até fazia impressão ver a velocidade da espada dele a desferir cutiladas seguidas umas atrás das outras.

Um deles, porém, ainda logrou ferir Daniel, que teve de soltar a espada. Com um salto, Fabrício lançou-se no meio dos inimigos, mesmo no sítio onde eles estavam mais concentrados, e então é que foi assistir a um combate lindo.
Uns dez ou doze caíram logo no chão, a gemer. Outros largaram as espadas e correram a bom correr. Balsemão Geraldes estava entre estes últimos.

Não vendo mais inimigos, Fabrício serenou e prestou atenção a Daniel. O golpe que o amigo sofrera era mais grave do que a princípio parecia. O sangue corria com abundância: uma veia fora atingida. O jovem fizera ligaduras com lenços, mas a sangria não tinha termo. Fabrício pegou no amigo como se ele fosse uma pena. Desceram um lanço da escada sem encontrar ninguém.


Bonifácio Geraldes, o dono da casa, sozinho no meio do átrio, com uma mão na ilharga e a outra sustendo a espada que ele ergueu ao aparecerem os nossos heróis, bradou com voz tonitruante:
- Alto aí! Nenhum de vós sairá desta casa enquanto não chegar a justiça D’el-Rei!
Fabrício hesitou, parando um momento. Mas logo continuou. Um pesado reposteiro ondulou mais fortemente, e ouviu-se um murmúrio por detrás dele.
Fabrício ultrapassou o dono de casa, chegou à porta, correu os ferrolhos, segredou a Daniel:
- Vai andando. Procura uma cadeirinha, e diz que te levem a casa...
Fabrício ficou ainda um pouco a falar com o dono da casa e depois saiu.

Ao fechar a porta, Fabrício estacou, ficando cego pela escuridão da noite. Adiantou uns passos, e reparou que havia
encostada à beira do palácio uma cadeirinha.
Um criado veio-lhe ao encontro, com um quadrado de papel. Era da parte de Florinda. O criado disse que vira Daniel, ferido, sentado no degrau da porta, e que uns homens o tinham levado, por uma porta das traseiras.


O papel era de Florinda, a pedir desculpa do seu procedimento no salão e que o criado podia levar Daniel para sua casa. De repente apareceram os guardas do Governador, que Geraldes mandara chamar. Eram quatro homens mais um oficial.

De dentro abriram imediatamente, e os guardas entraram. Não tardaram a reaparecer. Dois criados carregavam com Daniel, meio desmaiado. E logo depois a patrulha pôs-se em marcha. A porta do palácio fechou-se.
Assim que os guardas dobraram a esquina, Fabrício saiu-lhes ao caminho e desbaratou o grupo com facilidade.
Fabrício acompanhou a cadeirinha com Daniel ferido e dirigiu-se a casa da sua noiva.

A casa tinha um jardim em redor. Florinda, acompanhada por seu irmão - um rapaz de 19 anos, esperava, num banco cerca do portão do jardim, a chegada da cadeirinha.
- Oh! Como está o pobre Daniel? - perguntou Florinda,
- Está muito mal. E além disso corre outro perigo grave: os guardas do Governador querem prendê-lo. Os Geraldes queixaram-se de nós...
- Levá-lo agora para casa é o mesmo que entregá-lo à prisão. E no estado dele seria morte certa...

Instalaram Daniel num pavilhão do Jardim, escolheram dois bons cavalos e o irmão da moça prontificou-se a guiar Fabrício até à morada de um físico para tratar o Daniel.

Na volta, trouxeram o físico na garupa do cavalo de Daniel, e Fabrício tomou a dianteira para inspecionar o que se passava perto da casa de Florinda.
E aquilo foi inspiração do Céu. Alguém seguira a cadeirinha de longe, era o próprio Balsemão Geraldes em carne e osso. O repugnante espião voou direito ao Governador, acordou-o explicou-lhe o crime de Fabrício que atacara os guardas e lhes roubara Daniel, e pedia uma escolta reforçada para os ir prender a ambos a casa do pai de Florinda - a ocasião era ótima de fazerem figura, com as costas protegidas pelos soldados... - e partiu a tropa toda à caça dos prisioneiros.
Foi nesse momento que Fabrício, ainda ao longe, e sem ser visto, descobriu o que se passava. Galopou ao encontro de Miguel, avisando-o, e que desse uma volta maior com o mouro, enquanto ele desviaria as atenções do «regimento». E Fabrício era realmente homem capaz para se defrontar sozinho contra um regimento!

No entanto, Fabrício não podia arriscar-se a ser vencido, isso era arriscar a liberdade de Daniel, pois os outros, sendo vencedores, já não teriam mais hesitações em revistar a casa.
Portanto, procurou dar outro aspecto ao problema. Num arranque mais violento e mais enérgico, à força dum ciclone de cutiladas, abriu passagem através dos adversários, e fugiu. Obteve o efeito desejado. Todos galoparam atrás dele. Fabrício, propositadamente, encaminhou-se em direção à pequena fortaleza onde vivia o Governador, atravessando as ruelas da cidade, e acordando a população com o barulho infernal daquela cavalgada de sombras.

Chegado à fortaleza, Fabrício encontrou a porta fechada. No alto da muralha havia uma sentinela.
- Eh! Vai avisar o Sr. Governador que Fabrício Cecílio deseja falar-lhe!
Entretanto os perseguidores - sobre os quais Fabrício ganhara apenas um avanço de escassos cem metros - aproximavam-se rapidamente.
A porta abriu-se por fim, e a tropa de dentro, vendo que Fabrício lutava contra guardas do Governador, atacou também o nosso herói. Eram peões, armados de compridas lanças, alabardeiros e mais tropa miúda. Tomaram por alvo o cavalo, e logo feriram o pobre animal, mas antes que o cavalo fosse ferido de morte e o arrastasse na queda, pulou ele para o chão.

Tinha reparado que cerca da porta da fortaleza existia uma pequena igreja. Abrindo caminho à cutilada, correu para lá, e com um salto pisou o solo sagrado. A igreja pertencia a uns missionários franciscanos. O ímpeto com que Fabrício entrara, os passos desencontrados que deu, e o modo como se deixou cair nas lajes no meio da nave central, exausto e extenuado de tanta luta, distraiu os religiosos suspenderam a oração e vieram direito a ele.
- Que se passa, senhor cavaleiro?!
Fabrício tinha a cara suja de sangue dum golpe que recebera na testa e trazia também a roupa rasgada num ombro, por onde o sangue lhe ensopava o fato. Os ferimentos do nosso herói e a gritaria dos seus perseguidores aglomerados na porta da capela, dispensavam resposta à pergunta dos religiosos. Ajudaram Fabrício a erguer-se, e conduziram-no até ao claustro, onde lhe lavaram as feridas e lhe fizeram os pensos.

Fabrício contou-lhes resumidamente as aventuras da noite, e ia-lhes pedir que levassem ao Governador um pedido de audiência particular, quando apareceu o irmão porteiro e falou assim ao Superior:
- Está ali fora o senhor Governador, que deseja falar a Vossa Reverência... Fabrício ergueu-se, num salto instintivo, calculando que uma visita tão apressada não devia ser de boas-vindas.
Mas o Padre Superior sossegou-o:
- A casa de Deus é uma casa de paz...
- Mas... eu gostaria de lhe falar também... Quero explicar-lhe a intriga que fizeram contra nós, e a injustiça e desumanidade que seria se prendessem Daniel...
O Padre-Superior guardou silêncio uns momentos e por fim o rosto iluminou-se-lhe.
- Já sei o que lhe hei-de dizer! Esperai um instante!
E desapareceu, veloz. Passada uma longa hora, voltou. Vinha ainda mais sorridente do que quando partira.
- Está tudo arrumado! - exclamou.
- Tudo arrumado?! Que disse o Governador?
E o religioso contou que Fabrício estava ali, com Daniel e que no dia seguinte se apresentariam à sua justiça.
Entretanto mandara recado a Daniel a oferecer-lhe abrigo numa missão, situada a dez léguas de distância.
- Ninguém se lembrará de o ir lá procurar...



E o resto desta novela ilustrada, fica para o próximo artigo.

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