sábado, 5 de dezembro de 2015

A VIDA INTERIOR DAS REDAÇÕES DOS JORNAIS INFANTO-JUVENIS na memória de José Ruy (14)


14) O REPÓRTER CLIQUE


Uma tarde recebemos na redação o dono da Agência 2000, um francês que estava a angariar anúncios para o Tintin, e que eu desenhava com o objetivo de integrar a publicidade no ambiente das histórias da revista.
Entretanto ia aparecendo esta publicidade, bem aceite pelos leitores pois continha também uma história,
embora ingénua e simples, dirigida a um escalão etário mais baixo.

A Agência 2000 tinha contactado algumas firmas importantes no mercado que se interessaram em anunciar no Tintin. O francês propunha que criássemos uma personagem que se tornasse conhecida e que funcionaria como elo de ligação na série que acreditava conseguir angariar. Por isso queria conversar connosco, principalmente comigo que fazia os desenhos.
O que me ocorreu de imediato foi criar um jornalista que fosse fazendo as reportagens. Um repórter. Precisava de ter um nome simples, sonante e de fácil memorização. Porque não o som da máquina fotográfica, «clic»? Gostaram e foi aceite, faltava dar forma à figura. E a primeira «grande reportagem» foi na Aliança, e como precisávamos de «ver» para «crer» fui com o Dinis Machado à fábrica receber informações e acompanhar o fabrico para poder explicar em Quadrinhos.
Esta reportagem foi descrita em seis números e fiz acompanhar o «Clique» de um rapazito, o «Tonecas»,
a quem o repórter ia explicando o fabrico durante a visita. Nesta última página, o Tonecas trouxe a «Mariazinha» quando o Clique ia explicar o fabrico das bolachas. Ela simbolizava a bolacha «Maria».

Este novo «herói» interno do Tintin chegou a figurar nas apresentações das histórias, como na de Lucky Luke em «Canyon Apache».

Como previra o francês da Agência 2000 outras empresas foram aderindo a este género de anúncios que tinham até algo de didático: um banco, uma fábrica de sumos, a própria Siderurgia Nacional. Mas a seguir à reportagem na Aliança o Dinis Machado achou que realmente fazia falta um acompanhante para o Clique, de modo a estabelecerem um diálogo enquanto ia «fotografando». Seria um rapazito, como o Tonecas e lembrou-se de lhe chamar «Flash». Clique e Flash. Era o disparo da máquina e da luz.

Estes anúncios ultrapassaram as páginas do Tintin e foram publicados em jornais e outras revistas. A Aliança quis até fazer um folheto para distribuição com o conjunto das páginas, que foi impresso nas oficinas da Bertrand, para o qual acrescentei uma capa. O mesmo aconteceu com a reportagem no Banco.
O suplemento passou a ter 12 páginas e o Fernando Relvas começou aí a publicar as suas primeiras Histórias em Quadrinhos.
O Relvas publicou no "Tintin" algumas das suas melhores histórias, com bom argumento, bem contadas e muito equilibradas na mancha do claro-escuro.

Quando o «Jornal do Cuto» dirigido pelo Roussado Pinto com quem todos nós havíamos já trabalhado fez um ano de publicação resolvemos fazer-lhe uma surpresa. E ele retribuiu publicando-a nas suas páginas.

Mas nos anos 80 do século XX criara-se uma certa instabilidade política em Portugal. A revista «Tintin» continuava com boa venda, mas os direitos precisavam de ser enviados para a Bélgica e para a França e as quantias atingiam um volume que ultrapassava o limite que o Banco de Portugal estabelecera para a saída de divisas. Assim a Bertrand pagava conforme lhe era permitido, mas acumulando sempre uma diferença para o total. Tinham até de pagar a utilização do título «Tintin». Em dada altura as agências franco belgas receando uma súbita alteração política que pudesse pôr em causa receberem o dinheiro em dívida, começaram a pressionar a Bertrand que não podia fazer nada, porque lei é lei.
O Dinis Machado ciente de que o desfecho da polémica poderia levar ao corte do contrato e obrigar á suspensão do Tintin, lembrou-se de criar as condições para que se isso acontecesse poder sair com outra revista à base de colaboração portuguesa e alguma estrangeira de outra origem, aproveitando os assinantes e compradores fieis ao Tintin.
Nessa altura eu estava a trabalhar nas «Edições Europa-América» e o Dinis contactou-me para fazer uma série de histórias com o Clique e Flash sem ligação à publicidade para que os leitores o deixassem de ver comutado com os anúncios.
Saiam em dupla página, todas as semanas, e foram muitas as histórias publicadas.

E assim o Clique e o Flash entraram na pura aventura, com peripécias sempre ligadas à redação. Para que o protagonismo da personagem fosse mais forte, começou a entrar nas capas do Tintin intrometendo-se na divulgação das outras histórias. Mas mais ainda, aproximando-se do próprio título, indiciando um contra ponto à vinheta do Tintin e Milou.

Mas esta estratégica não foi compreendida pela administração, que achou que estávamos (as pessoas da redação) a procurar protagonismo aparecendo constantemente na revista. Porquê eles e não nós? Isto chegou a ser alvitrado. Além disso recearam que os franco-belgas se ofendessem em ver aquele «Clique» em lugar de tanto destaque, junto ao título.
Nessa altura o Henrique Trigueiros continuava como diretor, mas o chefe de redação deixou de aparecer na ficha técnica.
Sob pressões, o Dinis Machado saiu.
Em 1981 o Vasco Granja passou a diretor acumulando a chefia da redação. Mas a condenação estava iminente e o que o Dinis Machado previra aconteceu mesmo. Os belgas decidiram que se não recebessem todo o dinheiro cortavam com o envio dos fotólitos.
E a revista «Tintin» portuguesa acabou deixando os seus fiéis leitores à deriva, procurando outras publicações que entretanto foram surgindo.
(Continua)

No próximo artigo: AS SELEÇÕES BD

2 comentários:

  1. Obrigado por mais um artigo sobre o ambiente na TINTIN portuguesa!
    Gosto e são interessantes essas páginas de BD sobre a redacção e da dupla Clique e Flash, algumas didácticas e outras cheias de humor - uma das que me recordo bem é quando essa dupla (julgo que são eles os responsáveis...) vão visitar a casa, o Vasco Granja que está de cama, doente e que quase derrubam a sua vasta biblioteca de BD para cima do homem!...

    Tinha a ideia de que o TINTIN não sobreviveu no nosso mercado devido à crise ($$$) dos leitores e concorrência de BD´s mais baratas - nunca associei que os "capitalistas" ;-) dos belgas tiveram uma grande cota parte para o seu desaparecimento.

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    1. Caro A. Santos,
      Fique atento porque nos próximos dias publicaremos uma adenda a este artigo que o José Ruy escreveu de propósito, após este seu comentário.

      Saudações bedéfilas,
      Carlos Rico

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