sábado, 12 de setembro de 2020

A INFLUÊNCIA DA CENSURA NAS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS, EM PORTUGAL (5) - por José Ruy

Era o avolumar de uma utopia, o que acontecia todos os dias quando nos encontrávamos na hora do almoço, o Madeira Rodrigues, o Teixeira Abreu, o Dinis Machado e eu, durante esses meses de 1960.
As personagens iam sendo criadas entre mim e o João Paulo Madeira Rodrigues, com detalhes cuidadosos. Como foi ele a criar o «Lusibanco», retratei-o e recolhi atitudes e poses, que achei coadunarem-se com o perfil do boneco.
Os nossos companheiros deliravam com cada piada, e picavam-nos quando tardávamos a adiantar mais pormenores.

Continuemos com o Lusibanco. As suas características tinham a ver com o Ministro das Finanças da altura. Creio que dá para lerem as notas que acompanham os esquiços. O Madeira Rodrigues sempre gostou mais de ditar do que escrever e eu ia registando tudo no bloco.
«LUSIBANCO
Espertalhão, duma vivacidade insinuante como bicho-em-costura. Para obter o que pretende roja-se como a cobra, e uma vez alcançado o seu fim é sobranceiro e rude.
Pilar de instituições e temente dos deuses numa forma pessoal, intolerante para todas as fraquezas. Dominador até à violência, só respeita o que não lhe fica abaixo. Grandes qualidades de trabalho. Negociante e político por excelência. Gosta de empregar expressões como: É UMA RESPONSABILIDADE! Usa e abusa do NÃO que entende ser a fórmula do NÃO-COMPROMISSO e da NÃO- RESPONSABILIDADE, e esclarece: É MAIS FÁCIL DIZER NÃO DO QUE EXPLICAR SEJA O QUE FOR.
É avaro, contudo desde que lhe toquem na corda sensível-à-lisonja é capaz de larguezas.»

Portanto esta personagem não gostava de mudanças. Mantinha-se sentado num tronco de árvore e não queria mudar de lugar. De resto tinha os membros inferiores atrofiados. Assim, quando o quiseram transportar, tiveram de cortar o tronco e leva-lo aos ombros com o assento e tudo.
Aqui entram já duas figuras de que falarei mais tarde
«É muito susceptível. Teimoso; e por teimosia é capaz de se pôr contra tudo e todos. Possui um tipo de idealismo «sui géneris» conhecido por temperamento lusíado. Mas a teimosia, ou melhor, o levar a sua vontade até ao fim, permite-lhe absurdamente alcançar resultados de soluções positivas, mas passageiras.
Tem outra expressão que codifica todo o seu comportamento: PROTELAR É RESOLVER O PRAZO. Gosta de fazer evocações ambíguas a um passado de quem se julga herdeiro. FOI O INVENTOR DO ESCUDO-PADRÃO como moeda de troca.»


Passemos agora à Lusidia.
Esta personagem, inspirada como vos mostrei, nas esculturas encontradas nas escavações nos castros, foi estudada em todas as atitudes que precisava entrar na narrativa gráfica. Embora obesa era bastante ágil. Junto ao desenho a descrição das suas características. 
«LUSIDIA
Muito matronal, muito doméstica (tão doméstica como os animais caseiros) feroz defensora dos direitos do homem. Ardilosa e matreira usa uma linguagem que oscila entre o rude e o autoritário. Caracterizante sexo fraco apesar do seu aspecto grandioso, muito temente dos deuses. Fica de olho aceso, mas baixo, perante galanteios. Acha que todas as mulheres são umas desavergonhadas (?) muito suscetível. Possui um apurado sentido de propriedade. Admite-se que tem um fraco por Lusito, e uma adoração por Lusitanso que vê como um homem de confiança.»

Todas as personagens eram acompanhadas de um currículo e testadas no que se iria exigir delas. O Madeira Rodrigues foi genial na criação desses detalhes, de um requinte muito inteligente.
Durante esse período de tempo, os almoços eram praticamente engolidos para dedicarmos todo o resto do tempo ao nascer desta história que poderia desafiar a censura, mas que nunca sairia à estampa.
Era um gozo em circuito fechado.

No próximo episódio: «Outras personagens.»

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