Em 1988, pouco tempo depois de ter acabado a publicação do «Tintin», a Meribérica/Líber lançou uma revista com bastante qualidade, tanto na
parte artística como no aspeto gráfico: «Selecções BD».
Foi nesta revista que publiquei um curso abreviado de BD
durante dez números, por sugestão da Maria José Pereira e incentivado pelo
Geraldes Lino que assistira durante três anos aos cursos que ministrara no «Instituto
Médiocurso», em Lisboa.
Mas não é desta revista que vou falar, pois não tive uma
permanência significativa na sua redação, e o propósito destes artigos é contar
histórias que passei dentro desses locais onde nascem os sonhos.
Primeira série da revista «Selecções BD»
Vou contar, então, a minha experiência na redação das
«Selecções BD», mas na sua segunda série, saída à estampa em 1998.
Esta redação estava instalada no edifício da editora
Meribérica, na Avenida Duque d’Ávila, n.º 26, no terceiro e último andar. Era um
edifício antigo com pisos de grande pé direito e que o Telmo Protásio havia
ligado internamente ao prédio contíguo que também lhe pertencia. Tinha uma claraboia lindíssima que produzia um efeito de salão de exposições na sala de
reuniões da editora.
Era diretora da revista a Maria José Pereira que
trabalhava na editora havia tempo com a Natália Severino, que entretanto tinha sido
colocada no Brasil como diretora da Meribérica nesse país. O chefe de Redação
era o Jorge Magalhães que com a sua experiência e saber conseguiu uma seleção
muito criteriosa das histórias importadas de quase todos os quadrantes, como dos
Estados Unidos da América, de Itália, Espanha e França. Incluía alguma
colaboração portuguesa.
O seu formato era fora do normal, 30 x 23 cm, em bom papel
e com a particularidade de alguns dos temas do conteúdo roçarem o erótico,
portanto para um público mais adulto ou pelo menos mais crescido. Não era uma
revista infantil.
Eu de há muito que tinha boas relações com o Telmo
Protásio, e nessa altura ele estava interessado em publicar histórias do
Eduardo Teixeira Coelho. Sabendo da nossa grande amizade pediu-me se intercedia
nesse sentido e efetivamente chegou a fazer um contrato vantajoso para o autor
com o objetivo de reeditar toda a sua obra publicada em Portugal e no
estrangeiro, embora infelizmente esse projeto não tivesse chegado a concretizar-se.
O Teixeira Coelho entretanto havia doado todos os seus
originais, independentemente dos direitos autorais, ao «Centro Nacional de
Banda Desenhada e Imagem» fundado recentemente na Amadora.
Vieram pacotes de França e de Itália com mais de 4000
pranchas da série «Ragnar» e outras histórias. Os originais vinham desordenados e
como para se fazer o devido registo eram precisos muitos dias, combinou-se depositá-los
na redação das «Selecções BD» que os iria utilizar mais tarde para a publicação.
E quem estaria à altura de organizar esses originais? Sem
dúvida alguma a única pessoa entre nós com conhecimento e aptidão para tal, o
Jorge Magalhães, que se disponibilizou voluntariamente a meter ombros nessa
complicada e árdua tarefa.
A redação das «Selecções BD» circunscrevia-se a uma sala,
com boas janelas para a Avenida Duque d’Ávila de onde recebia boa luz e nessa
altura ficou «atravancada» com todo esse material. Andavam todos sob pressão,
pela responsabilidade quanto ao que tinham em mãos. Era como se o prémio de um
Euromilhões fabuloso que enchesse vários cofres, se encontrasse depositado numa
casa sem as mínimas condições de segurança. O Jorge Magalhães estava apreensivo
por isso e o que valeu foi que poucas pessoas se aperceberam do valor daquele
acervo. Para muitos eram montes de papel velho e amarelecido com bonecos
desenhados.
O Coelho trabalhava os originais ao dobro da publicação, e como o «Vaillant» tinha grande formato, essas pranchas atingiam uma medida maior do que A2. Daí a razão de desenhar em tiras para ser mais cómodo, que eram depois coladas com fita gomada para formarem a página.
As tiras que o Teixeira Coelho desenhava, isoladamente, e unia depois
formando a página para entregar na revista «Vailant»
Com os anos as fitas tinham perdido a aderência e as
tiras haviam-se solto na maior parte dos originais, misturando-se numa confusão
tremenda. Como o herói, «Ragnar», era comum a todas as histórias só uma pessoa
que conhecesse a fundo essas aventuras saberia localizar a qual pertencia cada
tira. Efetivamente esse difícil trabalho de identificação ficou a dever-se ao
conhecimento e memória do Jorge Magalhães, que sendo um fervoroso admirador do
E T. Coelho conhecia (e conhece) de cor todas as suas histórias.
Depois de agrupadas, essas pranchas seguiram para o «bunker»
do CNBDI onde se encontram devidamente acondicionadas em placas de «pH neutro»
dentro de armários de aço beneficiando de condições especiais contra ácaros,
humidade, inundações e incêndio. É o arquivo mais importante (creio) da Europa,
albergando neste momento cerca de 15000 pranchas originais e desenhos de
esboços, croquis tirados do natural, estudos, maquetas e capas de livros, de
autores nacionais e também alguns estrangeiros.
O Teixeira Coelho iniciou então uma colaboração inédita
para as «Selecções BD», com ilustrações e mesmo histórias em quadrinhos.
O ambiente na redação das «Selecções BD» era agradável e
calmo, onde o Jorge Magalhães dedicava muitas horas de trabalho. Perto da sua
secretária havia mais umas onde se sentavam funcionárias que ajudavam na
paginação. A revista era composta por histórias de continuação e algumas que se
completavam em cada número, e também por artigos sobre os autores em publicação,
notícias de lançamentos de livros e de Festivais de BD.
Duas rubricas interessantes: no verso da capa, em todos os números, o José Carlos Fernandes criava uma ilustração referente ao mês. Na página a seguir, a 3, porque a numeração começava na capa, o Augusto Trigo (a maioria das vezes, mas também, de quando em vez, o Carlos Roque, o Estrompa e outros) encarregavam-se de fazer humor para apresentar o sumário, sob a nota de abertura do Jorge Magalhães.
Em dada altura o Jorge Magalhães mostrou desejo de que eu
fizesse uma história para sair completa num número.
Lembrei-me de uma lenda que ouvira contar numa viagem ao
Médio Oriente, por um guia, e construí um argumento a partir daí. Chamei-lhe «A
Estátua Perdida» e era uma história baseada na célebre cena bíblica da mulher
de Loth transformada numa estátua de sal quando da destruição de Sodoma e
Gomorra. Tinha 10 páginas.
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Uma página de "A Estátua Perdida" |
Já no ano 2000, o Jorge Magalhães, que de há muito insistia
para que eu retomasse as «Lendas Japonesas» que nos anos 50 do século XX
iniciara na revista «Flama», me propôs que as publicasse nas «Selecções BD».
Entusiasmei-me e voltei ao tema, pois embora tivesse publicado 9 lendas sobre
as traduções de Wenceslau de Moraes, muitas mais tinham ficado por desenhar.
Seria interessante continuar a série com novos títulos.
No entanto resolvi refazer a primeira lenda com que tinha
iniciado a rubrica em 1949, «Amaterasu a Deusa da Luz do Sol», com uma
diferença de meio século.
O Jorge Magalhães fez na sua apresentação essa comparação
publicando a reprodução da primeira tira saída na revista «Flama».
Eis a primeira prancha da nova versão de «Amaterasu» e também a primeira de «As Duas Rãs Curiosas», esta desenhada pela primeira vez para as «Selecções BD».
Mais tarde, em 2012, dei cor a estas páginas e iniciei a
publicação na revista «Alternativa Espaço Aberto».
Seguiram-se outras lendas, mas entretanto a Editora
Meribérica começou a sofrer de desequilíbrios na sua gestão, o Telmo Protásio
colocara no departamento de produção uma sua familiar que entendeu de passar a
procurar no espaço europeu gráficas que nos seus tempos desocupados pudessem
fornecer orçamentos mais em conta. Só que uma revista periódica não pode ficar
à espera de uma oportunidade dessas vinda de Espanha, Itália ou de outro país.
Tinha de cumprir prazos e mesmo a distância tinha uma grande importância, pois
não era o mesmo de acabar a impressão numa oficina em Portugal e na mesma tarde
ser entregue na distribuidora. Para ajudar, a distribuidora da editora faliu e
feriu de morte a Meribérica. Esta suspendeu as publicações e ainda fez umas
tentativas de recuperação, mas sem o retorno das vendas nem tendo acesso ao
material distribuído, era difícil cumprir com os deveres para com as gráficas,
acabou por se desativar.
As Lendas japonesas foram interrompidas.
Com este triste final da editora, terminam também, mas
alegremente, estes artigos que já vão longos.
José Ruy