Mostrar mensagens com a etiqueta A Influência da Censura nas HQ em Portugal. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta A Influência da Censura nas HQ em Portugal. Mostrar todas as mensagens

domingo, 13 de dezembro de 2020

A INFLUÊNCIA DA CENSURA NAS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS, EM PORTUGAL (8) - por José Ruy

Caros leitores assíduos do BDBD, venho de novo a este artigo sobre a «censura», pois por lapso meu, não expliquei um pormenor que prometera faze-lo neste último.
Chamado à atenção pelo amigo zeloso e incansável Carlos Rico, aqui estou pedindo que me desculpem pela omissão e a corrigir a falta.
Lusito/Lusido
Uma das personagens que havíamos criado chamava-se LUSITO o militarão do grupo, e este nome estava identificado com a Mocidade Portuguesa.
Quando o Iriarte, do jornal "A Capital", nos convenceu a publicar a história cá, acautelámos não despertar a atenção da censura para as entrelinhas da narrativa. Assim, o título deixou de ser «OS LUSITANSOS», o que denunciava à partida o conteúdo da história, e o Lusito passou a ser LUSIDO, uma vez que todas as personagens eram LUSIS, derivado de Lusitanos.
Na época, pela prática que tínhamos de lidar de perto com esses lápis azuis e vermelhos que funcionavam como «camartelos» de destruição do que fazíamos e idealizávamos, aprendêramos a conhecer o raciocínio dos censores, e assim a maneira de os contornar. 
Um título, a composição da capa de um livro ou a maneira de escrever um artigo no jornal, era pensado em estilo de enigma como uma charada para só ser entendida com inteligência, mas parecer inócuo aos menos dotados.
E eis o motivo da alteração do nome desta figura e que eu não tinha feito a seu tempo.
Desejo que não volte a ter motivo, em minha vida, de contar experiências deste teor, no futuro.
Aqui me despeço destes artigos.
José Ruy

quarta-feira, 25 de novembro de 2020

A INFLUÊNCIA DA CENSURA NAS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS, EM PORTUGAL (7) - por José Ruy


Lusitanso
Contei-vos nos artigos anteriores como foram nascendo as personagens de uma história impossível de publicar em Portugal, com a censura que existia, e que servira apenas para nos entreter nas horas de almoço, quando trabalhávamos na Bertrand Editora e na Editorial Íbis, como era o caso do Paulo Madeira Rodrigues e o Abreu Teixeira. Eu e o Dinis Machado estávamos na Bertrand. Mas essa utopia era criada pelo Paulo Madeira e por mim.
Lusibanco
Arrumámos o assunto e os anos passaram; nenhum de nós continuava já nessas empresas. O Dinis Machado saíra da revista Tin-Tin, o Abreu Teixeira saíra da editora Íbis e fora paginar o novo jornal diário «A Capital», o Paulo Madeira Rodrigues estava a trabalhar com o irmão numa fábrica de massas alimentícias e eu tinha aceite um convite para as Publicações Europa-América.
Em certa altura, ao arrumar as pastas numa gaveta, vi um papel rabiscado que me chamou a atenção. Era uma sinopse que o Paulo Madeira Rodrigues havia feito para a tal aventura com as personagens que havíamos criado. Li e achei que tinha muita atualidade. Haviam passado 10 anos, estávamos em 1971, e o sistema político e social não se tinha alterado em nada, e as piadas mantinham-se certeiras. 
Lusidia
Falei para o Paulo, que me disse não se lembrar nada disso.
Resolvi ir a casa dele e mostrei-lhe o papel. Reconheceu a letra e ao ler, achou o mesmo que eu. Mostrou à esposa, a Maria João, que era conservadora do Museu de São Roque em Lisboa, e também ela achou muita piada e sobretudo com uma oportunidade impressionante.
Bom, eu apenas queria mostrar como passados tantos anos o que tínhamos feito a brincar se mantinha vivo, mas o Paulo avançou com a ideia de fazermos mesmo a história.
Ri-me, pois só podia ser mais outra piada. 
Lusido
Que não, podíamos até conseguir publica-la. Sim, respondi eu, mas ao sair a primeira página seríamos logo presos.
Mas a utopia começou a criar contornos de realidade. Tínhamos um amigo comum, o Ilídio Matos, agente que representava em Portugal as histórias ilustradas inglesas, e a quem eu comprava o material inglês publicado na 2.ª série de «O Mosquito». Então o Paulo explanou-me o seu plano. Desenhava-se toda a história com 44 páginas, fazíamos fotólitos e era esse material que circularia, à semelhança do método dos franco-belgas.
O Paulo escreveria o texto em inglês, língua que dominava bem, pois estivera alguns anos em Londres, e o Ilídio faria uma importação fictícia como se se tratasse de um original estrangeiro. Usaríamos pseudónimos e assim já poderia ser publicada aqui sem grande perigo para nós, e até talvez fora do país. 
Porca de Murça
Reunimo-nos com o Ilídio que alinhou na ideia e delirou com a história.
Metemos mãos à obra. Reuníamo-nos todas as semanas, uma vez em minha casa e outra na casa dele. O Paulo Madeira Rodrigues gostava de criar oralmente as páginas, e eu ia esboçando no papel, vinheta a vinheta. A seguir ele escrevia as legendas. Durante a semana eu ia desenhando definitivamente as pranchas a nankin, tal como as legendas.
Mandámos fotografar os originais, nessa altura ainda com negativo logo ao tamanho da impressão e daí, por contacto, os fotólitos. Eram estes que enviaríamos ficando os originais na nossa mão.
Entretanto o Madeira Rodrigues continuava a dar-se com o Teixeira Abreu, e quando estávamos quase a acabar a história o Iriarte, que era o chefe da redação, chamou-nos ao jornal pois queria falar connosco.
E aí fez-nos uma proposta que nos deixou sem palavras.
Queria publicar a história. Retorquimos que era muito arriscado, que esperasse então pela «importação» fictícia de Inglaterra, pois assim a censura não deixaria passar e criaríamos problemas graves.
Ele disse que era realmente um risco, mas que podíamos tentar. Todo o material dos jornais era previamente censurado, textos, fotos e desenhos. Por isso, caso cortassem, ficava por aí. Podiam fazer ficha dos autores, mas desconhecendo o desenrolar da narrativa não descobriam o que este continha. Até porque o princípio da história não era agressivo e ele publicaria o material de modo discreto. 
Discreto dizia ele. Uns dias antes da publicação começou a pôr anúncio, com os bonecos das personagens, e fez-nos uma entrevista de meia página com fotografia de nós dois. Lamentavelmente a folha do jornal com a entrevista perdeu-se, o que não é costume pois guardo tudo. Resta a foto que saiu n’«A Capital».

O jornal tinha dois suplementos semanais, um de histórias aos Quadrinhos, que se chamava (se não estou em erro) «Quadradinhos» e saía às quintas feiras, e outro ao sábado, «Cena 7», com um apanhado dos acontecimentos da semana. Foi precisamente nesse suplemento que o Iriarte meteu a história, duas páginas. Pensámos que se fosse misturado nas outras histórias ilustradas passaria mais despercebido. 
Ficámos preocupados, pois ao aparecer naquela rubrica ficava com bastante destaque por ser o único elemento desenhado no conjunto, o que podia despertar a atenção dos censores. Mas perdidos por um, pedidos por mil. Uma vez começado não podíamos voltar atrás. Realmente os primeiros episódios pareciam inócuos e não houve qualquer reação. «Pareciam», mas observando bem, no discurso do Lusibanco havia já alusões ao 28 de maio de 1926, com a «conquista do Sul» e o «forte braço» que mantinha a posição do «escudo». 
O argumento era muito bom e foi para mim um privilégio fazer esta história que foi publicada durante seis meses, sem que a censura ligasse um episódio a outro e apanhasse o fio da meada. Na parte final empalmámos excertos de discursos de Salazar e Caetano na voz do Lusibanco.
Depois da revolução de 25 de abril de 1974, soubemos que presos políticos a quem facultavam a leitura de jornais, ao verem a série n’«A Capital», espantavam-se, pensando que tinha havido uma «abertura» na Censura.
Em 1984 a Editora Futura editou em álbum toda a história a preto e branco, pela mão do saudoso amigo Jorge Magalhães.
E aqui termina esta história de como numa brincadeira de hora de almoço se construiu uma aventura que driblou os censores da altura.

Uma das folhas do roteiro

Eis a primeira página já pronta, preparada para poder ser dividida ao meio e publicada em meias páginas, conforme o espaço disponível no jornal.

quarta-feira, 14 de outubro de 2020

A INFLUÊNCIA DA CENSURA NAS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS, EM PORTUGAL (6) - por José Ruy

As personagens desta história nunca publicável, iam tomando vulto em cada almoço entre o Madeira Rodrigues, eu, o Dinis Machado e o Teixeira Abreu. Era nesses repastos que criávamos as figuras e o seu comportamento. Tonou-se num agradável passar do tempo e uma aposta constantemente renovada.
A seguir ao Lusibanco e à Lusidia, o Madeira Rodrigues e eu criámos o «Lusito», o militarão do grupo de «Lusis» que ia nascendo. Mais tarde o seu nome derivou para «Lusido», pelo motivo que contarei mais adiante.
Os detalhes iam sendo estudados. Por exemplo, os Lusitanos usavam as falcatas do lado direito, pois aos destros dava mais jeito para sacar logo da arma sem atravessar o braço para o lado contrário.
Ainda sem argumento, estudava as figuras em variadas atitudes.
O Madeira Rodrigues ia desenvolvendo as características das novas personagens.
Depois foi a vez de dar «alma» ao Lusitanso, o que dava nome à história.
Em princípio pensámos ser careca, aproximando-se de uma personalidade em destaque na altura, década de 1960. Mas descobrimos que para os Lusitanos o cabelo era importante e quem o tinha perdido não era considerado na comunidade. Então acrescentei-lhe uma farta cabeleira, mas mantendo o ar humilde e simplório de «tanso».
Aqui mostro um apontamento de como poderíamos desenvolver as aventuras com estas personagens. Podiam viajar no tempo sem se singirem à época dos Lusitanos.
E por fim, a pérola no ramalhete: a Porca de Murça, figura que abunda em esculturas talhadas em granito pelo Norte do País, e que representa uma divindade a que os Lusitanos prestariam culto. Por isso esta figura veio fechar o grupo destes Lusitansos, e a Lusidia passou a ser a Sacerdotisa da Porca. 
As manchas que marcam o papel envelhecido são vestígios dos fundos das chávenas do café que tomávamos após o almoço.
Pesquisámos e fomos ao pormenor de ver como os porcos são presos por uma perna, e como é feito esse nó, para haver uma veracidade no que fizéssemos.
Completo o grupo de personagens, o Madeira Rodrigues esboçou uma sinopse de uma aventura: os «nossos heróis» desciam dos Montes Hermínios até aos Algarves que, constava, ser uma terra promissora, de cultivos abundantes e águas temperadas.
Divertíamo-nos com esta criação impossível.
O tempo rolou, o Tintin português suspendeu a publicação, o Dinis Machado saiu da Bertrand, o Madeira Rodrigues abandonou a Íbis e foi trabalhar numa fábrica de massas alimentícias de um seu irmão, eu fui para a Europa-América e este «gozo» ficou fechado numa pasta que guardei. E passaram anos.
Foi quando…

No próximo artigo: o reacender da chama.

sábado, 12 de setembro de 2020

A INFLUÊNCIA DA CENSURA NAS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS, EM PORTUGAL (5) - por José Ruy

Era o avolumar de uma utopia, o que acontecia todos os dias quando nos encontrávamos na hora do almoço, o Madeira Rodrigues, o Teixeira Abreu, o Dinis Machado e eu, durante esses meses de 1960.
As personagens iam sendo criadas entre mim e o João Paulo Madeira Rodrigues, com detalhes cuidadosos. Como foi ele a criar o «Lusibanco», retratei-o e recolhi atitudes e poses, que achei coadunarem-se com o perfil do boneco.
Os nossos companheiros deliravam com cada piada, e picavam-nos quando tardávamos a adiantar mais pormenores.

Continuemos com o Lusibanco. As suas características tinham a ver com o Ministro das Finanças da altura. Creio que dá para lerem as notas que acompanham os esquiços. O Madeira Rodrigues sempre gostou mais de ditar do que escrever e eu ia registando tudo no bloco.
«LUSIBANCO
Espertalhão, duma vivacidade insinuante como bicho-em-costura. Para obter o que pretende roja-se como a cobra, e uma vez alcançado o seu fim é sobranceiro e rude.
Pilar de instituições e temente dos deuses numa forma pessoal, intolerante para todas as fraquezas. Dominador até à violência, só respeita o que não lhe fica abaixo. Grandes qualidades de trabalho. Negociante e político por excelência. Gosta de empregar expressões como: É UMA RESPONSABILIDADE! Usa e abusa do NÃO que entende ser a fórmula do NÃO-COMPROMISSO e da NÃO- RESPONSABILIDADE, e esclarece: É MAIS FÁCIL DIZER NÃO DO QUE EXPLICAR SEJA O QUE FOR.
É avaro, contudo desde que lhe toquem na corda sensível-à-lisonja é capaz de larguezas.»

Portanto esta personagem não gostava de mudanças. Mantinha-se sentado num tronco de árvore e não queria mudar de lugar. De resto tinha os membros inferiores atrofiados. Assim, quando o quiseram transportar, tiveram de cortar o tronco e leva-lo aos ombros com o assento e tudo.
Aqui entram já duas figuras de que falarei mais tarde
«É muito susceptível. Teimoso; e por teimosia é capaz de se pôr contra tudo e todos. Possui um tipo de idealismo «sui géneris» conhecido por temperamento lusíado. Mas a teimosia, ou melhor, o levar a sua vontade até ao fim, permite-lhe absurdamente alcançar resultados de soluções positivas, mas passageiras.
Tem outra expressão que codifica todo o seu comportamento: PROTELAR É RESOLVER O PRAZO. Gosta de fazer evocações ambíguas a um passado de quem se julga herdeiro. FOI O INVENTOR DO ESCUDO-PADRÃO como moeda de troca.»


Passemos agora à Lusidia.
Esta personagem, inspirada como vos mostrei, nas esculturas encontradas nas escavações nos castros, foi estudada em todas as atitudes que precisava entrar na narrativa gráfica. Embora obesa era bastante ágil. Junto ao desenho a descrição das suas características. 
«LUSIDIA
Muito matronal, muito doméstica (tão doméstica como os animais caseiros) feroz defensora dos direitos do homem. Ardilosa e matreira usa uma linguagem que oscila entre o rude e o autoritário. Caracterizante sexo fraco apesar do seu aspecto grandioso, muito temente dos deuses. Fica de olho aceso, mas baixo, perante galanteios. Acha que todas as mulheres são umas desavergonhadas (?) muito suscetível. Possui um apurado sentido de propriedade. Admite-se que tem um fraco por Lusito, e uma adoração por Lusitanso que vê como um homem de confiança.»

Todas as personagens eram acompanhadas de um currículo e testadas no que se iria exigir delas. O Madeira Rodrigues foi genial na criação desses detalhes, de um requinte muito inteligente.
Durante esse período de tempo, os almoços eram praticamente engolidos para dedicarmos todo o resto do tempo ao nascer desta história que poderia desafiar a censura, mas que nunca sairia à estampa.
Era um gozo em circuito fechado.

No próximo episódio: «Outras personagens.»

terça-feira, 18 de agosto de 2020

A INFLUÊNCIA DA CENSURA NAS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS, EM PORTUGAL (4) - por José Ruy

Vou contar-vos os pormenores de um grande desafio que tive em 1972 com a censura, então em funções para as publicações infantojuvenis.

Para melhor compreenderem o ambiente criado que levou a essa situação, começarei por relatar factos anteriores.
Recuemos aos anos 1968...

Quando se iniciou a publicação da revista Tintin em Portugal, constava do contrato o preenchimento das suas páginas com material de origem belga e francesa, ficando uma proporção de 20% destinado à colaboração portuguesa.
Foi entregue ao Vítor Péon essa colaboração, que executou com o seu saber e experiência, também com textos de sua autoria. 
Eu achei muito bem, pois escolheu episódios da nossa história pátria, já que 80% da revista era preenchida por histórias estrangeiras. 
Foi uma maneira de marcar presença junto do nosso público jovem.
E nessa linha, foi publicando a «Batalha de Aljubarrota», «Os Lusitanos», «Sertório», as «Descobertas Marítimas», «Diogo Cão», «Pedro Álvares Cabral e o Brasil», «A Travessia do Atlântico Sul», tudo muito bem documentado e desenhado com rigor.
Prosseguiu com «A presença portuguesa em Macau», «Fernão de Magalhães», «O Infante D. Henrique», «Gorongosa e outras reservas de caça em Moçambique». 
E enveredou pelas campanhas portuguesas em África. 
Mas aí surgiu um problema. Não com a censura em Portugal, mas com os responsáveis pelas revistas Tintin e Spirou, que protestaram, pois nessa altura os belgas tinham perdido o Congo, e considerando que as colónias em África estavam a acabar, não achavam bem que em Portugal, que mantinha teimosamente as suas, fizessem alarde disso.
As administrações da Bertrand Editora e da Íbis, associadas nesta edição portuguesa do Tintin, entraram em pânico, e temendo que anulassem o contrato, resolveram, não só suspender essas histórias, mas até a colaboração portuguesa, preenchendo o espaço com mais material franco belga.
Como devem calcular, isso motivou grande apreensão da nossa parte, operadores da Bertrand e Íbis, respetivamente do Dinis Machado, do Paulo Madeira Rodrigues, do Teixeira Abreu e eu próprio. Habitualmente íamos almoçar juntos numas tasquinhas na periferia da redação, e aí comentávamos esta medida de censura interior, pois a decisão mais acertada teria sido controlar os temas da colaboração portuguesa, mas nunca cortá-la definitivamente. Dessa maneira a revista ficou totalmente estrangeira.
E comentando a atitude que podíamos ter para com a nossa censura, afirmei que a única maneira de ludibriar os censores, seria pelo humor, como o Goscini e o Uderzo conseguiam nas Aventuras de Asterix. Para além da comicidade das situações criadas, eles caricaturavam personagens da política francesa, o que atraia o público adulto, que percebia as piadas com o seu segundo sentido, oportunas e acutilantes. 
E avancei, que na linha do «Asterix», podíamos contar uma história dos «Lusitansos», tirando partido do trocadilho, gozando com a política. Isso dava motivo para sãs gargalhadas nas nossas horas de almoço.
O Madeira Rodrigues avançava com ideias para personagens que podiam fazer parte dessa história impossível. Criou um «Lusibanco», personagem meio deficiente, que não conseguia andar muito, uma espécie de Pina Manique e Salazar, que inventara o «escudo», a moeda padrão, a partir das cetras, (escudos de defesa).
Eu ia fazendo apontamentos num bloco e dando volume às personagens, em rabiscos rápidos sobre o joelho.

Achei então que todas as personagens a criar se chamariam «Lusis», a partir da palavra Lusitanos, e assim criei a Lusidia, mulher obesa, inspirada nas estatuetas encontradas nas exumações de castros.
O Madeira Rodrigues acrescentava ideias que eu registava, para que não nos esquecêssemos.

E as piadas seguiam-se dia após dia, entre mim e o Madeira Rodrigues como que num desafio, para gozo dos colegas de nós próprios.
Era a construção de personagens para uma história que nunca seria publicada, mas que nos dava muita satisfação em cria-la.

No próximo episódio: 
O avolumar de uma utopia

quinta-feira, 9 de julho de 2020

A INFLUÊNCIA DA CENSURA NAS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS, EM PORTUGAL (3) - por José Ruy

Continuo a narrativa da minha experiência quanto à censura, em relação aos trabalhos que fiz nessa época.
Neste artigo vou focar um outro aspeto pouco conhecido, creio.
As proibições e impedimentos não se ficavam só pelos cortes nas imagens a publicar.
Vou contar um episódio passado comigo e que mostra uma outra faceta da censura.

Em 1958 estava em preparação a Exposição Universal e Internacional em Bruxelas. 
Uns colegas do departamento de contabilidade do Diário de Notícias lembraram-se de organizar uma visita ao certame. Alugaram um autocarro e procuraram preencher todos os lugares. Convidaram-me para os acompanhar. Tinham confirmadas estadias em todo o percurso, que atravessava Espanha, França, Bélgica onde havia a exposição, Alemanha, Holanda e Suiça. No regresso visitávamos outras cidades nos mesmos países. Era aliciante e a quantia a dispor, acessível.  
Reuni economias e tratei do passaporte. Mas no Governo Civil, em face da minha profissão, por ser considerada especializada, não permitiam a saída do país.
Fiquei espantado.
Exigiam um fiador que garantisse o meu regresso ao país, para evitar que aproveitasse para emigrar.
O fiador tinha de ser uma pessoa estabelecida, que enquanto eu estivesse fora manteria um aval bancário à disposição do Governo Civil, com uma quantia considerável, além de sofrer represálias se eu não voltasse.
Pedi logo essa fiança ao Diário de Notícias, pois fazia parte dos quadros havia já cinco anos, tínhamos um bom relacionamento, o que garantiria o meu regresso. Auferia de um bom ordenado e uma carreira em formação. Pareceu-me que seria o suficiente como prova.
Negativo, a empresa não podia servir de fiadora, porque era meio estatal.
Voltei-me para pessoas amigas estabelecidas, mas as respostas coincidiam com a que recebera do Jornal, não por pertencerem ao Estado, mas por não se fiarem de mim.
Ninguém arriscava, embora me conhecessem bem, e da minha verticalidade em assuntos de compromisso.
 Comecei a ficar preocupado. Como ia conseguir um fiador que confiasse na minha volta ao país?
Nem mesmo um familiar, primo ou padrinho de casamento, que era dono de um jornal, arriscou, o que demonstra que "santos de casa..."
Lembrei-me do proprietário de uma fotogravura, que um tempo atrás me pedira uns desenhos, e que ia protelando o pagamento, alegando a altura não ser boa, que esperasse um pouco, pois o cliente ainda não tinha liquidado o trabalho, e mais desculpas de mau pagador.
Tinha já pensado que nunca iria receber esse dinheiro. Não sendo muito, era ainda uma significativa quantia.
Propus-lhe que, se me servisse de fiador, lhe perdoaria o valor dos desenhos. A quantia exigida pelo Governo Civil bastava que ficasse cativa durante o mês da minha ausência, portanto ficaria sem poder ser movimentada, mas não precisava ser transferida da conta.
O sujeito aceitou, pois esse acreditou que eu voltava. Caloteiro, mas confiante.

E lá partimos, eu e a minha mulher. Fui munido de uma máquina fotográfica "Flexaret", formato 6x6 cm, e levei rolos de diapositivos a cores, que recentemente tinham aparecido no mercado. Mas a revelação era feita em França.
Para ilustrar este artigo, junto algumas imagens dessas velhas recordações, com o deficiente estado da pelicula, deteriorada com os anos. Perderam muito da cor original, mas dá para ver.
O sistema de revelação desta película estava muito em princípio e com os anos e a luz do projetor que utilizava para ampliar as fotos numa tela, oxidou-se e em alguns casos ficou a uma só cor.
O Monumento Atomiun, em Bruxelas, que ficou como ex-libris da cidade, e se mantém ainda hoje como símbolo.
Outro ângulo do monumento. Havia um  teleférico que possibilitava aos visitantes uma vista aérea da exposição. Podem ver-se duas dessas cabinas.

Este diapositivo foi tirado em Hagen, uma pequena cidade alemã, da janela do Hotel. Mostro-a para verem o tipo de autocarro que nos transportava na viagem. Nessa altura, as bagagens eram colocadas no tejadilho, e cobertas com uma lona para as proteger da poeira e da chuva. Sempre que parávamos para pernoitar era preciso descer toda a bagagem, e na altura da partida voltar a pôr tudo em cima. E na passagem pelas fronteiras, o mesmo, para verificação do que transportávamos. Uma trabalheira. Outros tempos.
Freiburg, na Suiça, cantão alemão. O diapositivo não perdeu o recorte. Apenas a cor.

O célebre relógio de flores, em Genebra, na Suiça, que era uma novidade. Em Portugal tivemos, depois, perto do Aeroporto um parecido.

Agora a rosácea de Notre Dame, de Paris.
Também em França, um teleférico que dá acesso às grutas de Bétharram. A foto foi tirada de uma das cabinas. Sobe-se até ao cume de um vulcão extinto, claro, e depois entramos por umas galerias, onde há uma corrente subterrânea de água, e navegamos até à base. Foi uma experiência única para mim, na altura.
A Praça Dourada de Bruxelas estava, nessa altura, no seu melhor brilho. Muitos anos depois, mais recentemente, voltei lá e o ouro tinha descido de quilates, mais próximo do pechisbeque.
 Em Madrid, o Memorial à Guerra Civil, o "Vale dos Caídos", erigido em memória dos combatentes das duas facções em litígio. Todos tinham caído a defender o seu ideal.
 
Vitrais da Catedral de Chartres, em França.
Berna, na Suiça.
Na cidade de Nimes, França, o Templo de Diana, em perfeito estado de conservação.
O Sputnik, que nessa época tinha sido lançado até à Lua, com a cadela Laika.
E o stand de Tintin, que nos estava a mostrar, neste painel, um original junto
à reprodução, com o retrato do autor, Hergé. 

Mas tudo isto para vos contar como a mão pesada da censura nos oprimia sob vários aspetos.

No próximo artigo, o meu maior desafio com a censura, em 1972.