quarta-feira, 25 de novembro de 2020

A INFLUÊNCIA DA CENSURA NAS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS, EM PORTUGAL (7) - por José Ruy


Lusitanso
Contei-vos nos artigos anteriores como foram nascendo as personagens de uma história impossível de publicar em Portugal, com a censura que existia, e que servira apenas para nos entreter nas horas de almoço, quando trabalhávamos na Bertrand Editora e na Editorial Íbis, como era o caso do Paulo Madeira Rodrigues e o Abreu Teixeira. Eu e o Dinis Machado estávamos na Bertrand. Mas essa utopia era criada pelo Paulo Madeira e por mim.
Lusibanco
Arrumámos o assunto e os anos passaram; nenhum de nós continuava já nessas empresas. O Dinis Machado saíra da revista Tin-Tin, o Abreu Teixeira saíra da editora Íbis e fora paginar o novo jornal diário «A Capital», o Paulo Madeira Rodrigues estava a trabalhar com o irmão numa fábrica de massas alimentícias e eu tinha aceite um convite para as Publicações Europa-América.
Em certa altura, ao arrumar as pastas numa gaveta, vi um papel rabiscado que me chamou a atenção. Era uma sinopse que o Paulo Madeira Rodrigues havia feito para a tal aventura com as personagens que havíamos criado. Li e achei que tinha muita atualidade. Haviam passado 10 anos, estávamos em 1971, e o sistema político e social não se tinha alterado em nada, e as piadas mantinham-se certeiras. 
Lusidia
Falei para o Paulo, que me disse não se lembrar nada disso.
Resolvi ir a casa dele e mostrei-lhe o papel. Reconheceu a letra e ao ler, achou o mesmo que eu. Mostrou à esposa, a Maria João, que era conservadora do Museu de São Roque em Lisboa, e também ela achou muita piada e sobretudo com uma oportunidade impressionante.
Bom, eu apenas queria mostrar como passados tantos anos o que tínhamos feito a brincar se mantinha vivo, mas o Paulo avançou com a ideia de fazermos mesmo a história.
Ri-me, pois só podia ser mais outra piada. 
Lusido
Que não, podíamos até conseguir publica-la. Sim, respondi eu, mas ao sair a primeira página seríamos logo presos.
Mas a utopia começou a criar contornos de realidade. Tínhamos um amigo comum, o Ilídio Matos, agente que representava em Portugal as histórias ilustradas inglesas, e a quem eu comprava o material inglês publicado na 2.ª série de «O Mosquito». Então o Paulo explanou-me o seu plano. Desenhava-se toda a história com 44 páginas, fazíamos fotólitos e era esse material que circularia, à semelhança do método dos franco-belgas.
O Paulo escreveria o texto em inglês, língua que dominava bem, pois estivera alguns anos em Londres, e o Ilídio faria uma importação fictícia como se se tratasse de um original estrangeiro. Usaríamos pseudónimos e assim já poderia ser publicada aqui sem grande perigo para nós, e até talvez fora do país. 
Porca de Murça
Reunimo-nos com o Ilídio que alinhou na ideia e delirou com a história.
Metemos mãos à obra. Reuníamo-nos todas as semanas, uma vez em minha casa e outra na casa dele. O Paulo Madeira Rodrigues gostava de criar oralmente as páginas, e eu ia esboçando no papel, vinheta a vinheta. A seguir ele escrevia as legendas. Durante a semana eu ia desenhando definitivamente as pranchas a nankin, tal como as legendas.
Mandámos fotografar os originais, nessa altura ainda com negativo logo ao tamanho da impressão e daí, por contacto, os fotólitos. Eram estes que enviaríamos ficando os originais na nossa mão.
Entretanto o Madeira Rodrigues continuava a dar-se com o Teixeira Abreu, e quando estávamos quase a acabar a história o Iriarte, que era o chefe da redação, chamou-nos ao jornal pois queria falar connosco.
E aí fez-nos uma proposta que nos deixou sem palavras.
Queria publicar a história. Retorquimos que era muito arriscado, que esperasse então pela «importação» fictícia de Inglaterra, pois assim a censura não deixaria passar e criaríamos problemas graves.
Ele disse que era realmente um risco, mas que podíamos tentar. Todo o material dos jornais era previamente censurado, textos, fotos e desenhos. Por isso, caso cortassem, ficava por aí. Podiam fazer ficha dos autores, mas desconhecendo o desenrolar da narrativa não descobriam o que este continha. Até porque o princípio da história não era agressivo e ele publicaria o material de modo discreto. 
Discreto dizia ele. Uns dias antes da publicação começou a pôr anúncio, com os bonecos das personagens, e fez-nos uma entrevista de meia página com fotografia de nós dois. Lamentavelmente a folha do jornal com a entrevista perdeu-se, o que não é costume pois guardo tudo. Resta a foto que saiu n’«A Capital».

O jornal tinha dois suplementos semanais, um de histórias aos Quadrinhos, que se chamava (se não estou em erro) «Quadradinhos» e saía às quintas feiras, e outro ao sábado, «Cena 7», com um apanhado dos acontecimentos da semana. Foi precisamente nesse suplemento que o Iriarte meteu a história, duas páginas. Pensámos que se fosse misturado nas outras histórias ilustradas passaria mais despercebido. 
Ficámos preocupados, pois ao aparecer naquela rubrica ficava com bastante destaque por ser o único elemento desenhado no conjunto, o que podia despertar a atenção dos censores. Mas perdidos por um, pedidos por mil. Uma vez começado não podíamos voltar atrás. Realmente os primeiros episódios pareciam inócuos e não houve qualquer reação. «Pareciam», mas observando bem, no discurso do Lusibanco havia já alusões ao 28 de maio de 1926, com a «conquista do Sul» e o «forte braço» que mantinha a posição do «escudo». 
O argumento era muito bom e foi para mim um privilégio fazer esta história que foi publicada durante seis meses, sem que a censura ligasse um episódio a outro e apanhasse o fio da meada. Na parte final empalmámos excertos de discursos de Salazar e Caetano na voz do Lusibanco.
Depois da revolução de 25 de abril de 1974, soubemos que presos políticos a quem facultavam a leitura de jornais, ao verem a série n’«A Capital», espantavam-se, pensando que tinha havido uma «abertura» na Censura.
Em 1984 a Editora Futura editou em álbum toda a história a preto e branco, pela mão do saudoso amigo Jorge Magalhães.
E aqui termina esta história de como numa brincadeira de hora de almoço se construiu uma aventura que driblou os censores da altura.

Uma das folhas do roteiro

Eis a primeira página já pronta, preparada para poder ser dividida ao meio e publicada em meias páginas, conforme o espaço disponível no jornal.

4 comentários:

  1. Escrevi um texto de agradecimento, onde recordei o encontro com José Ruy, Paulo Madeira e "As Aventuras de Quatro Lusitanos e uma Porca" e ele... desapareceu! Será que optaram pela moderação dos comentários e primeiro vão ver se ele está "nos conformes" e só depois é que o publicam?...

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  2. Caro João Neves,
    A moderação de comentários nunca esteve activa no nosso blogue. Felizmente não tem sido necessária pois os comentários que os nossos leitores aqui nos deixam foram sempre dentro das normas do respeito e da cordialidade. Sugerimos que volte a tentar incluir esse comentário uma vez que este que agora fez, como vê, ficou visivel de imediato.
    Saudações bedéfilas
    BDBD

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  3. Lusido e Lusidia parecem-se com a fisionomia de Tintin. Terá sido propositado ou é um erro meu de análise?

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  4. sugiro os seguintes links:

    https://largodoscorreios.wordpress.com/2015/06/28/um-asterix-lusitano/

    https://largodoscorreios.wordpress.com/2015/07/01/um-asterix-lusitano-i/

    https://largodoscorreios.wordpress.com/2015/08/15/um-asterix-lusitano-uma-analise-da-epoca/

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