quinta-feira, 9 de julho de 2020

A INFLUÊNCIA DA CENSURA NAS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS, EM PORTUGAL (3) - por José Ruy

Continuo a narrativa da minha experiência quanto à censura, em relação aos trabalhos que fiz nessa época.
Neste artigo vou focar um outro aspeto pouco conhecido, creio.
As proibições e impedimentos não se ficavam só pelos cortes nas imagens a publicar.
Vou contar um episódio passado comigo e que mostra uma outra faceta da censura.

Em 1958 estava em preparação a Exposição Universal e Internacional em Bruxelas. 
Uns colegas do departamento de contabilidade do Diário de Notícias lembraram-se de organizar uma visita ao certame. Alugaram um autocarro e procuraram preencher todos os lugares. Convidaram-me para os acompanhar. Tinham confirmadas estadias em todo o percurso, que atravessava Espanha, França, Bélgica onde havia a exposição, Alemanha, Holanda e Suiça. No regresso visitávamos outras cidades nos mesmos países. Era aliciante e a quantia a dispor, acessível.  
Reuni economias e tratei do passaporte. Mas no Governo Civil, em face da minha profissão, por ser considerada especializada, não permitiam a saída do país.
Fiquei espantado.
Exigiam um fiador que garantisse o meu regresso ao país, para evitar que aproveitasse para emigrar.
O fiador tinha de ser uma pessoa estabelecida, que enquanto eu estivesse fora manteria um aval bancário à disposição do Governo Civil, com uma quantia considerável, além de sofrer represálias se eu não voltasse.
Pedi logo essa fiança ao Diário de Notícias, pois fazia parte dos quadros havia já cinco anos, tínhamos um bom relacionamento, o que garantiria o meu regresso. Auferia de um bom ordenado e uma carreira em formação. Pareceu-me que seria o suficiente como prova.
Negativo, a empresa não podia servir de fiadora, porque era meio estatal.
Voltei-me para pessoas amigas estabelecidas, mas as respostas coincidiam com a que recebera do Jornal, não por pertencerem ao Estado, mas por não se fiarem de mim.
Ninguém arriscava, embora me conhecessem bem, e da minha verticalidade em assuntos de compromisso.
 Comecei a ficar preocupado. Como ia conseguir um fiador que confiasse na minha volta ao país?
Nem mesmo um familiar, primo ou padrinho de casamento, que era dono de um jornal, arriscou, o que demonstra que "santos de casa..."
Lembrei-me do proprietário de uma fotogravura, que um tempo atrás me pedira uns desenhos, e que ia protelando o pagamento, alegando a altura não ser boa, que esperasse um pouco, pois o cliente ainda não tinha liquidado o trabalho, e mais desculpas de mau pagador.
Tinha já pensado que nunca iria receber esse dinheiro. Não sendo muito, era ainda uma significativa quantia.
Propus-lhe que, se me servisse de fiador, lhe perdoaria o valor dos desenhos. A quantia exigida pelo Governo Civil bastava que ficasse cativa durante o mês da minha ausência, portanto ficaria sem poder ser movimentada, mas não precisava ser transferida da conta.
O sujeito aceitou, pois esse acreditou que eu voltava. Caloteiro, mas confiante.

E lá partimos, eu e a minha mulher. Fui munido de uma máquina fotográfica "Flexaret", formato 6x6 cm, e levei rolos de diapositivos a cores, que recentemente tinham aparecido no mercado. Mas a revelação era feita em França.
Para ilustrar este artigo, junto algumas imagens dessas velhas recordações, com o deficiente estado da pelicula, deteriorada com os anos. Perderam muito da cor original, mas dá para ver.
O sistema de revelação desta película estava muito em princípio e com os anos e a luz do projetor que utilizava para ampliar as fotos numa tela, oxidou-se e em alguns casos ficou a uma só cor.
O Monumento Atomiun, em Bruxelas, que ficou como ex-libris da cidade, e se mantém ainda hoje como símbolo.
Outro ângulo do monumento. Havia um  teleférico que possibilitava aos visitantes uma vista aérea da exposição. Podem ver-se duas dessas cabinas.

Este diapositivo foi tirado em Hagen, uma pequena cidade alemã, da janela do Hotel. Mostro-a para verem o tipo de autocarro que nos transportava na viagem. Nessa altura, as bagagens eram colocadas no tejadilho, e cobertas com uma lona para as proteger da poeira e da chuva. Sempre que parávamos para pernoitar era preciso descer toda a bagagem, e na altura da partida voltar a pôr tudo em cima. E na passagem pelas fronteiras, o mesmo, para verificação do que transportávamos. Uma trabalheira. Outros tempos.
Freiburg, na Suiça, cantão alemão. O diapositivo não perdeu o recorte. Apenas a cor.

O célebre relógio de flores, em Genebra, na Suiça, que era uma novidade. Em Portugal tivemos, depois, perto do Aeroporto um parecido.

Agora a rosácea de Notre Dame, de Paris.
Também em França, um teleférico que dá acesso às grutas de Bétharram. A foto foi tirada de uma das cabinas. Sobe-se até ao cume de um vulcão extinto, claro, e depois entramos por umas galerias, onde há uma corrente subterrânea de água, e navegamos até à base. Foi uma experiência única para mim, na altura.
A Praça Dourada de Bruxelas estava, nessa altura, no seu melhor brilho. Muitos anos depois, mais recentemente, voltei lá e o ouro tinha descido de quilates, mais próximo do pechisbeque.
 Em Madrid, o Memorial à Guerra Civil, o "Vale dos Caídos", erigido em memória dos combatentes das duas facções em litígio. Todos tinham caído a defender o seu ideal.
 
Vitrais da Catedral de Chartres, em França.
Berna, na Suiça.
Na cidade de Nimes, França, o Templo de Diana, em perfeito estado de conservação.
O Sputnik, que nessa época tinha sido lançado até à Lua, com a cadela Laika.
E o stand de Tintin, que nos estava a mostrar, neste painel, um original junto
à reprodução, com o retrato do autor, Hergé. 

Mas tudo isto para vos contar como a mão pesada da censura nos oprimia sob vários aspetos.

No próximo artigo, o meu maior desafio com a censura, em 1972.

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