terça-feira, 18 de agosto de 2020

A INFLUÊNCIA DA CENSURA NAS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS, EM PORTUGAL (4) - por José Ruy

Vou contar-vos os pormenores de um grande desafio que tive em 1972 com a censura, então em funções para as publicações infantojuvenis.

Para melhor compreenderem o ambiente criado que levou a essa situação, começarei por relatar factos anteriores.
Recuemos aos anos 1968...

Quando se iniciou a publicação da revista Tintin em Portugal, constava do contrato o preenchimento das suas páginas com material de origem belga e francesa, ficando uma proporção de 20% destinado à colaboração portuguesa.
Foi entregue ao Vítor Péon essa colaboração, que executou com o seu saber e experiência, também com textos de sua autoria. 
Eu achei muito bem, pois escolheu episódios da nossa história pátria, já que 80% da revista era preenchida por histórias estrangeiras. 
Foi uma maneira de marcar presença junto do nosso público jovem.
E nessa linha, foi publicando a «Batalha de Aljubarrota», «Os Lusitanos», «Sertório», as «Descobertas Marítimas», «Diogo Cão», «Pedro Álvares Cabral e o Brasil», «A Travessia do Atlântico Sul», tudo muito bem documentado e desenhado com rigor.
Prosseguiu com «A presença portuguesa em Macau», «Fernão de Magalhães», «O Infante D. Henrique», «Gorongosa e outras reservas de caça em Moçambique». 
E enveredou pelas campanhas portuguesas em África. 
Mas aí surgiu um problema. Não com a censura em Portugal, mas com os responsáveis pelas revistas Tintin e Spirou, que protestaram, pois nessa altura os belgas tinham perdido o Congo, e considerando que as colónias em África estavam a acabar, não achavam bem que em Portugal, que mantinha teimosamente as suas, fizessem alarde disso.
As administrações da Bertrand Editora e da Íbis, associadas nesta edição portuguesa do Tintin, entraram em pânico, e temendo que anulassem o contrato, resolveram, não só suspender essas histórias, mas até a colaboração portuguesa, preenchendo o espaço com mais material franco belga.
Como devem calcular, isso motivou grande apreensão da nossa parte, operadores da Bertrand e Íbis, respetivamente do Dinis Machado, do Paulo Madeira Rodrigues, do Teixeira Abreu e eu próprio. Habitualmente íamos almoçar juntos numas tasquinhas na periferia da redação, e aí comentávamos esta medida de censura interior, pois a decisão mais acertada teria sido controlar os temas da colaboração portuguesa, mas nunca cortá-la definitivamente. Dessa maneira a revista ficou totalmente estrangeira.
E comentando a atitude que podíamos ter para com a nossa censura, afirmei que a única maneira de ludibriar os censores, seria pelo humor, como o Goscini e o Uderzo conseguiam nas Aventuras de Asterix. Para além da comicidade das situações criadas, eles caricaturavam personagens da política francesa, o que atraia o público adulto, que percebia as piadas com o seu segundo sentido, oportunas e acutilantes. 
E avancei, que na linha do «Asterix», podíamos contar uma história dos «Lusitansos», tirando partido do trocadilho, gozando com a política. Isso dava motivo para sãs gargalhadas nas nossas horas de almoço.
O Madeira Rodrigues avançava com ideias para personagens que podiam fazer parte dessa história impossível. Criou um «Lusibanco», personagem meio deficiente, que não conseguia andar muito, uma espécie de Pina Manique e Salazar, que inventara o «escudo», a moeda padrão, a partir das cetras, (escudos de defesa).
Eu ia fazendo apontamentos num bloco e dando volume às personagens, em rabiscos rápidos sobre o joelho.

Achei então que todas as personagens a criar se chamariam «Lusis», a partir da palavra Lusitanos, e assim criei a Lusidia, mulher obesa, inspirada nas estatuetas encontradas nas exumações de castros.
O Madeira Rodrigues acrescentava ideias que eu registava, para que não nos esquecêssemos.

E as piadas seguiam-se dia após dia, entre mim e o Madeira Rodrigues como que num desafio, para gozo dos colegas de nós próprios.
Era a construção de personagens para uma história que nunca seria publicada, mas que nos dava muita satisfação em cria-la.

No próximo episódio: 
O avolumar de uma utopia

4 comentários:

  1. Interroguei-me várias vezes sobre a razão que teria levado ao fim abrupto da participação de Vitor Péon na revista Tintin. Nunca a vira explicada e, uma vez que o conteúdo até estava bem alinhado politicamente com o regime, não entendia o seu fim. Sempre o imaginei como sendo o autor a abandonar um projeto demasiado preso a ditames de ordem ideologica, ou então um conflito financeiro insanável ente a revista e o autor. Vejo agora que a minha projeção estava completamente errada e os motivos foram efetivamente diferentes. Fica também explicada a inexistência de autores portugueses durante muitos anos no Tintin.
    Obrigado ao José Ruy por trazer estas memórias muito importantes para a história da edição em Portugal e, neste caso, para os efeitos da censura na mesma.
    Paulo Viegas

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    1. Meu caro Paulo Viegas, pois o interesse destes desafios que o BDBDBlogue me tem feito, afigura-se-me que seja o dar a conhecer pormenores de acontecimentos em que participei ou assisti, que não foram divulgados, uns por ser inconveniente na altura, outros por acharmos não terem interesse. Mas passados tantos anos, tomam forma de curiosidade, e há quem aprecie, como é o seu caso. Já agora, se me permite, o filho de um colega e amigo que tive no Diário de Notícias, chamava-se Paulo Viegas e chegou a morar no andar abaixo do meu, na Amadora. Não é o mesmo Paulo Viegas?
      Forte abraço
      José Ruy

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    2. Caro José Ruy
      Não sou a pessoa que conheceu nesse prédio onde residiu.
      Sou um admirador do seu trabalho, designadamente de algumas abordagens que faz da História, colocando a ficção envolvida em factos reais, conseguindo apresentá-los de modo preciso. Estou a recordar, por exemplo, Operação Óscar, Mataram o rei! Viva a República ou o Capitão Bomvento. Parece-me que será pioneiro neste tipo abordagem, fugindo a um estilo demasiado marcado pela narrativa factual que por vezes é centrada numa perspetiva patriótica um pouco exacerbada, e que começou a afirmar-se em anos longínquos no Diabrete.
      O seu testemunho é importante para a história da banda desenhada em Portugal, pois percorreu-a desde a década de quarenta, estando presente em muitas das revistas que a sedimentaram na cultura portuguesa: O Papagaio, O Mosquito, Cavaleiro Andante, Jornal da BD, para só referir aquelas em que os seus trabalhos surgiram com mais frequência, tendo ainda a experiência mais recente da edição direta em álbuns.
      Faz falta em Portugal a narrativa sobre o que se passou nas redações dessas revistas, porque foram tomadas determinadas opções editoriais, existiu o efeito da censura e muitos outros aspetos que poderia ser importantes serem conhecidos, e ninguém melhor para os contar do que quem os viveu.
      O seu conhecimento ao serviço da análise da banda desenhada também é único, e não esqueço, caro José Ruy, t o excelente conjunto de artigos da sua autoria, publicados na década de 80 no Mundo de Aventuras, sobre Eduardo Teixeira Coelho, e que, me permitiram, a mim, que era na altura um iniciante adepto de BD, conhecer e perceber melhor esse autor.
      Espero que possamos continuar a contar com as suas memórias e com mais trabalhos de banda desenhada.
      Paulo Viegas

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    3. Caríssimo Paulo Viegas peço que me desculpe de pensar ser um amigo que pedi no tempo e na vida que se mete pelo meio. Grato pelas suas apreciações ao meu trabalho. Obrigado por gostar de Histórias em Quadrinhos, termo que acho mais adequado do que BD. Realmente a minha ligação ao ETCoelho traduziu-se numa fortíssima amizade até ao fim da sua vida, e de uma sã camaradagem durante muitas décadas que o afastamento físico não esmoreceu.
      Grande abraço
      José Ruy

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