Tem o Curso de Ciências Comerciais e Consulares (tirado no Institut Superieur de Commerce de Belgique, em Bruxelas) e nessa cidade exerceu funções no Euratom. Foi, depois, trabalhar em Roma para a FAO (organismo da ONU para a Agricultura).
Após três anos em Itália, regressou a Bruxelas e casou, em 1968, com Carlos Roque, iniciando com este uma frutuosa parceria, escrevendo argumentos e gags para séries BD que criaram juntos. Na vida como no trabalho, Monique e Carlos mantinham uma grande cumplicidade, o que se traduziu em magníficas tiras e pranchas de personagens absolutamente inesquecíveis como "Angélique", o pato "Wladimyr" ou o Mágico "Patrake".
Em Portugal, onde o casal também viveu, Monique deu aulas de francês no Banco de Portugal e no Instituto Nacional de Administração.
Com o falecimento de Carlos, em 2006, Monique colocou de lado a sua faceta de argumentista, deixando, em definitivo, na gaveta os muitos projectos que o casal sonhava desenvolver.
Hoje, reside alternadamente na Bélgica, seu país-natal, e em Portugal, que abraçou como seu, também.
Tentando resgatar de um anonimato mais ou menos forçado a argumentista que tantos gags inventou para Carlos desenhar magistralmente, apresentamos hoje uma curta mas interessante entrevista com Monique Roque, que esperamos seja do agrado dos nossos leitores.
BDBD - Sendo natural da Bélgica (um país onde a BD tem um estatuto tão especial), a Monique, antes de conhecer Carlos Roque, tinha alguma afinidade com a banda desenhada (como leitora, por exemplo) ou era algo que não fazia parte da sua vida?
Monique Roque (MR) - Na verdade, a banda desenhada não fazia muito parte da minha vida. Em miúda comecei a ler as aventuras de Tintin e algumas outras obras, mas preferia ler livros com texto - romances, essencialmente - dado que os meus pais tinham uma grande reserva deles. Transmitiram-me, desde muito jovem, o gosto pela leitura.
BDBD - Como foi que você e o
Carlos se conheceram?
Monique, quando jovem, caricaturada por Carlos Roque |
MR – O nosso encontro foi o
resultado de muitas coincidências. Em primeiro lugar houve o encontro do melhor
amigo de Carlos, José Conde Reis (que emigrou também para a Bélgica) com a
minha melhor amiga (que se chama também Monique). Foram eles que tiveram a ideia
de um encontro entre o Carlos e eu. Só que, nesta altura, eu não queria encontrar
ninguém. Tinha decidido sair da Bélgica e participei num concurso da FAO
(Organização das Nações Unidas para a Agricultura, com sede em Roma). A minha
candidatura foi aceite e estava à espera de ser convocada para trabalhar lá. Finalmente, encontrei o Carlos... três semanas antes de partir para Roma. Simpatizámos logo mas tivemos, então, uma relação complicada devido à separação e à distância. Foram bem três anos de separação entre Carlos, em Bruxelas, e eu, em Roma. De facto, só tomámos contacto durante as três primeiras semanas antes da minha viagem. Depois foi tudo por telefone e cartas (não havia nem telemóvel, nem e-mail nesta altura!). O Carlos foi visitar-me a Roma algumas vezes, enquanto eu voltava de férias a Bruxelas também às vezes, mas tivemos pouco tempo juntos. Por isso digo que foi uma relação um pouco complicada e difícil de gerir. Depois de três anos, resolvi regressar a Bruxelas onde casámos... e vivemos muito felizes, como se diz nos contos de fadas!
BDBD - Sei que o Carlos a introduziu nos "bastidores" da banda desenhada, onde privou com muitos dos grandes nomes da BD europeia. Como foi essa experiência? Que memórias guarda desses tempos?
BDBD - Sei que o Carlos a introduziu nos "bastidores" da banda desenhada, onde privou com muitos dos grandes nomes da BD europeia. Como foi essa experiência? Que memórias guarda desses tempos?
MR - Guardo excelentes recordações disso. Foi uma experiência muito rica em descobertas e emoções. Encontrei e falei com gente tão famosa: Hergé, Franquin, Roba, Morris, Goscinny... não posso citar aqui todos. Por exemplo, Franquin gostava muito do Carlos e do seu trabalho, ao ponto de lhe pedir para fazer os títulos dos álbuns de Spirou ou de Gaston Lagaffe! Era toda a gente muito simpática e o ambiente sempre muito convival. Fomos a exposições, jantares, tertúlias...
Para mim era tudo novo e excitante. Depois encontrei, também, os artistas portugueses e o mundo da BD em Portugal. Outra experiência muito interessante.
Para mim era tudo novo e excitante. Depois encontrei, também, os artistas portugueses e o mundo da BD em Portugal. Outra experiência muito interessante.
BDBD - Como foi que a Monique se tornou argumentista?
MR - Foi muito simples. No
princípio, era só ajudar o Carlos no texto em francês. Mas depois começámos a
discutir ideias de gags e, pouco a
pouco, a minha participação foi-se desenvolvendo.
Monique e Carlos Roque |
MR - Nós gostávamos de trocar ideias de histórias. Eram trabalhadas
em conjunto e surgiam naturalmente; uma vez era mais uma ideia do Carlos, outra
vez era minha. Depois vinha o trabalho de criação: encontrar o texto à medida
dos desenhos. Era muito gratificante e gostei muito desta “actividade” nova. Não
tinha cara de trabalho, mas sim de prazer verdadeiro. Criar em conjunto e ver o
resultado.
BDBD - E a Monique? Também interferia com o desenho do Carlos, dando sugestões e ajustando pormenores? Lembra-se de alguma situação, em particular, em que isso tenha sucedido?
MR - Um bom exemplo é o nosso
pato Wladimyr. Fui eu quem sugeriu ao Carlos que desenhasse um pato mas ele
estava muito reticente: havia já muitos patos na banda desenhada, e não gostava
de bichos a brincar a homens. Mas o mundo de Wladimyr, afinal, não tinha nada
disso. Optámos por histórias mais ao estilo dos Peanuts. O Carlos mostrou-me os primeiros esboços do pato e gostei
logo. No princípio era um projecto pouco ambicioso: fazer alguns gags, porque talvez não fosse fácil
encontrar ideias boas. Por fim, fizemos uma centena de histórias, com capas e
sumários para o jornal Spirou. Até ganhámos um prémio, o prémio St. Michel.
BDBD - O Carlos trabalhou
com outros argumentistas, ao longo da sua carreira. E a Monique? Trabalhou
exclusivamente com o Carlos ou também criou argumentos/gags para outros desenhadores?
MR - Trabalhei só com o
Carlos. Estava bastante ocupada porque tinha um emprego. Fazer BD era só nos tempos
livres.
BDBD - Falemos um pouco dos personagens/séries que criaram juntos. Creio que o primeiro foi a Angélique, certo?
MR – Sim, comecei com Angélique. À partida, Angélique foi inspirada pelo Malaquias, sendo uma versão feminina desta personagem de que o Carlos gostava muito. Havia poucas personagens de raparigas na BD. O Carlos imaginou, então, esta rapariga falsamente inocente que inventa cada uma para "atormentar" o seu querido tio... A principio, o Director do jornal Spirou, Charles Dupuis, não gostava muito da figura do tio que achava "demasiado gordo", mas o Carlos explicou que a intenção era mesmo jogar com o contraste entre estes dois "heróis". Gostei muito de participar nas peripécias desta adorável pequenina. Como já disse, as ideias de gags vinham de discussões a dois. Era muito gratificante e divertido fazer isto. A série trazia algo de novo nas personagens e teve bastante sucesso.
BDBD - O Pato Wladimyr foi
talvez a vossa série de maior sucesso, tendo mesmo ganho o Grand Prix, como já disse...
MR - De facto, eu gosto de patos e foi por isso que tive esta ideia. Como expliquei,
o Carlos hesitou mas quando lhe dei algumas ideias de gags ele começou a ganhar interesse no projecto. O Carlos, com o seu
talento, criou um pato totalmente diferente e conseguiu torna-lo muito expressivo.
Foi a chave do sucesso da série. Também o facto de ter sempre o mesmo cenário e
as personagens que, pouco a pouco, entraram neste mundo à parte de Wladimyr, tudo
isso explica o sucesso. Ficámos muito contentes por ver que o público percebeu
bem a nossa filosofia na série.
MR - Essa história é muita gira
e foi muito divertido fazê-la. Tirámos fotografias para obter mais realismo.
Foi uma ideia que tivemos um belo dia e gosto muito do resultado final. Não diria
que o Wladimyr é o alter-ego do
Carlos enquanto eu seria Elodie, mas é verdade que algo das nossas
personalidades se reflete nestas personagens. E também é verdade que fizemos
críticas e comentários muito pessoais através desta série…
MR - Como já disse, nós
trocávamos ideias e tínhamos muitas afinidades na nossa maneira de pensar e de
viver. A nossa relação era muito forte. Logicamente havia uma influência minha
no trabalho do Carlos. Foi uma grande colaboração, que resultava do nosso
grande entendimento em geral. É verdade que interferi para escolher o nome do Patrake. O nosso mágico é uma paródia humorística do Mandrake e o Carlos queria um nome bastante próximo, para evidenciar a referência. Pensei então em "Patrake", que faz lembrar alguém com pouco jeito. O Patrake, coitado, não é um mágico muito esperto!...
Tiras de "Patrake, o Mágico" publicadas na TV Guia Júnior, suplemento da revista TV Guia.
BDBD - Restam-nos o Malaquias e o gato Moska. Fale-nos um pouco
destes personagens.
MR - O Malaquias foi um trabalho do Carlos, em Portugal, antes de me conhecer. Gosto muito desta série mas não há nada de mim neste personagem. O gato "Moska" é outra coisa. É inspirado num gato nosso, que partilhou connosco dezoito anos de vida. É pena que o Carlos não tenha tido tempo para continuar os esboços, pois tinha muitas e boas ideias para gags. Ficaram, assim, na casa dos projectos...
suplemento da revista TV Guia.
BDBD - Há uma
história/paródia, também com argumento seu, desenhada
maravilhosamente pelo Carlos Roque em preto e branco, que se baseava vagamente
n’ "Os Pássaros", de Hitchcock. Que razões os levaram a trabalhar
esse tema? Eram apreciadores de cinema, de uma maneira geral, ou gostavam
particularmente dos filmes do mestre do suspense?
MR - Nós gostávamos muito de cinema em geral, de todos os géneros, e penso que vimos quase todos os filmes de Hitchcock. É mais uma prova da nossa comunhão de gostos: o Carlos ia ver as obras de Hitch e também eu ia. Não me lembro muito bem de como surgiu a ideia das quatro páginas desta história, que não é bem uma paródia mas sim uma referência com admiração. Lembro-me, sim, que tivemos muito prazer em inventar tudo isto e, naturalmente, o Carlos conseguiu um desenho perfeitamente adaptado ao ambiente da história. Teve bastante sucesso na revista Spirou.
"Os Passarocos de Manfredo Ycxkcoc", por Monique e Carlos Roque,
in "O Mosquito" (5.ª série) #3 (1984)
MR - Infelizmente a gaveta estava cheia de
projectos diversos, incluindo o tal Moska. Guardei os esboços, as ideias anotadas, etc. Mas sem o Carlos, tem de ficar assim...
BDBD - Li, algures numa
entrevista, que a Monique e o Carlos Roque consideravam os seus personagens como
“os filhos que não tiveram”. Nunca pôs a hipótese, após o falecimento do
Carlos, de outros autores pegarem nos vossos "filhos" e continuarem
as respectivas séries?
MR - Pensei nisso mas não encontrei
ninguém interessado nesta oportunidade. Na verdade talvez não me sentisse apta a gerir bem esta situação...
Acho que a BD moderna difere bastante daquela que o Carlos conheceu. Tenho a certeza - ou quase a certeza - que o Carlos, tal como eu, não ia gostar muito do que se faz agora na BD. Isto é a minha opinião, puramente pessoal, e não se deve generalizar. Felizmente ainda há bons desenhadores mas não é fácil encontrar alguém que queira “adoptar os nossos filhos”. Pelo menos, até agora, não encontrei essa “pérola rara”!
Acho que a BD moderna difere bastante daquela que o Carlos conheceu. Tenho a certeza - ou quase a certeza - que o Carlos, tal como eu, não ia gostar muito do que se faz agora na BD. Isto é a minha opinião, puramente pessoal, e não se deve generalizar. Felizmente ainda há bons desenhadores mas não é fácil encontrar alguém que queira “adoptar os nossos filhos”. Pelo menos, até agora, não encontrei essa “pérola rara”!
BDBD - O Carlos esteve (e está, como se comprova nesta entrevista) sempre muito presente na sua vida. Nota-se que havia uma relação muito forte entre ambos. Nunca pensou em publicar um álbum com as melhores tiras do Wladimyr, as melhores histórias da Angelique ou os melhores gags do Patrake? Não acha que falta um álbum que recupere esses trabalhos?
MR - Claro
que pensei (e ainda penso!) nisso. Mas, tal como é difícil encontrar desenhadores,
também é muito complicado achar um
editor. Já tentei aqui em Portugal mas, depois das promessas do início, não se
concretizou nada. Aliás, vou tentar tratar disso quando voltar da Bélgica. Também na Bélgica encontro as mesmas dificuldades. A BD porta-se melhor lá, talvez, mas o que funciona são os mangás e a BD “moderna” de que falei acima.
Carlos Roque tinha o sonho de publicar os seus personagens em Portugal, como se pode comprovar por este projecto de capa e contra-capa para uma colecção de álbuns que, lamentavelmente, nunca se viria a concretizar...
BDBD - Em 2011, o Carlos Roque foi alvo de uma homenagem póstuma no salão Moura BD, com uma bela exposição de originais (que viajou, depois, para o Festival da Amadora desse mesmo ano) e a entrega do Troféu Balanito Especial, que a Monique recebeu no palco do Cine-Teatro Caridade completamente lotado, perante um caloroso aplauso do público.
Apesar disso, acha que a obra e a memória de Carlos Roque têm sido suficientemente relembradas pelo meio bedéfilo?
MR - Acho que não e lamento isso. Fiquei muito feliz quando ocorreu esta homenagem em Moura, e ainda estou muito agradecida à Câmara de Moura por ter tomado essa decisão. Sei que alguém (chamado Carlos Rico) teve um papel muito importante nessa iniciativa. Foi muito bom e guardo preciosamente o Troféu Balanito.
Também foi muito bom ter, depois, a oportunidade de ter uma sala dedicada ao Carlos Roque (e a mim) no Festival da Amadora. Ainda bem que há gente interessada na obra do Carlos. Mesmo não sendo muitos, são de qualidade. Agradeço muito por ter esta nova oportunidade de falar dele.
BDBD - Quer dizer mais alguma coisa ou deixar alguma mensagem aos nossos leitores?
MR - Só quero fazer uma sugestão: se não conhecem as historias desenhadas pelo Carlos Roque, tentem descobrir algumas. Penso que farão uma bela descoberta. E se já conhecem a sua obra, muito obrigada pelo interesse. Ele merece. Disto tenho toda certeza.
BDBD - Muito obrigado, Monique, por esta entrevista, e esperemos que esse álbum com trabalhos de Carlos Roque seja, em breve, uma realidade.
CR
Obrigado pela interessante entrevista e pelos "Passarocos" que foi estreia!
ResponderEliminarHá muito talento de Carlos Roque por "descobrir" pelo leitor português...
ASantos
Obrigado nós, ASantos, pelo seu comentário.
EliminarE tem toda a razão: o Carlos Roque necessita ser (re)descoberto pelo público português... Talvez a publicação de um álbum, como se diz na entrevista, fosse um primeiro passo...
Abraço
Carlos Rico
Uma bela entrevista, sem dúvida, que faz jus ao talento de Carlos Roque e da sua dedicada companheira e colaboradora Monique. Carlos tem uma vasta obra dispersa por várias publicações, que (como se frisa nesta entrevista) bem merecia ser recolhida em álbum, para memória futura. Mas não esqueçamos um dos seus trabalhos mais incontornáveis, "O Cruzeiro do Caranguejo", publicado no "Camarada" (2ª série) — tal como o "Malaquias — e mais tarde também no "Spirou", que teve direito a uma recolha em álbum, um dos primeiros (em edição cartonada) e dos mais raros e preciosos da BD portuguesa.
ResponderEliminarConheci o Carlos ainda na nossa juventude, lidei com ele durante anos a fio, convivi com este casal maravilhoso sempre que vinha a Portugal, tive a sorte de poder publicar algumas páginas do "Wladimyr" nas "Selecções BD" e ainda por cima fui seu argumentista (a distância) para uma curta história dada à estampa no livro de homenagem a Vasco Granja.
Tudo isso cimentou uma amizade e uma admiração sem limites pelo seu enorme talento, que nunca se desvanecerá no tempo. E por um ser humano verdadeiramente excepcional, de uma modéstia e simplicidade cada vez mais raras, que encontrou na Monique a sua "alma gémea".
Jorge Magalhães
Bonitas palavras, Jorge, que subscrevo praticamente na íntegra, com o pequeno/grande detalhe de que não posso partilhar dessa amizade que nutria (e nutre) pelo Carlos Roque simplesmente porque não tive o prazer e a honra de o conhecer... Foi pena, pois, como sabe, admiro imenso toda a sua obra. Pude, contudo, conhecer a Monique, em 2011, e, sendo a "alma gémea" do Carlos, posso confirmar que é uma pessoa excepcional, que muito me honra com a sua amizade.
ResponderEliminarGrande abraço, Jorge, e obrigado pelo seu comentário.
Carlos Rico