sexta-feira, 8 de abril de 2016

ENTREVISTAS (21) - SPACCA

Spacca (1964)
Honra-nos hoje com uma entrevista o desenhista Spacca, um dos grandes valores brasileiros actuais da Banda Desenhada e da Caricatura.
De seu nome completo João Spacca de Oliveira,  nasceu em S.Paulo a 28 de Junho de 1964, residindo agora em Mogi das Cruzes (a 50 quilómetros da sua cidade natal). Já participou em algumas festas-BD em Portugal.
Pela 9.ª Arte, tem obras como “O Verbo Que Se Vê (Padre António Vieira)”, “O Castigo de Judas, o Beijoqueiro (publicada nas “Selecções BD #8, em 1999), “Jubiabá”, “Santô e os Pais da AviaçãoDebret em Viagem Histórica e Quadrinhesca ao Brasil”, D. João Carioca”, “As Barbas do Imperador”, Mil Léguas Transamazônicas (um álbum onde Spacca é responsável pelo argumento, fazendo parceria com o desenhista Will), etc.
Ganhou duas vezes o Troféu HQMIX.
E vamos à nossa “conversa”.

BDBD - Quando foi que sentiste o apelo para as histórias aos quadrinhos?
Spacca (S) - Desde criança. Assim que percebi que era capaz de desenhar, e antes de saber ler, “lia” os gibis que apareciam em casa, acompanhando as imagens e entendendo o que era possível. Às vezes, pedia para minha mãe escrever alguma frase, para eu copiar nas minhas primeiras tentativas de quadrinhos.
E pedia para que ela escrevesse “na minha letra”, ou seja, em letras maiúsculas, para ficar parecido com as HQ.
Ou seja, a identificação com os quadrinhos - a “minha letra” - sempre foi muito forte.

BDBD - Uma das tuas obras é a adaptação de “Jubiabá” de Jorge Amado. A teu ver, foi uma ousadia tua agarrares um texto de um grande senhor da Literatura?
S - Essa pergunta levanta vários aspectos.
Por um lado, sim, Jorge Amado é um criador importante, e sua obra deu origem a inúmeras adaptações para cinema e TV, algumas excelentes.
Por outro, Jorge é depreciado por certa ala da crítica, justamente por ser um escritor “fácil” e pouco experimental.
Por outro, ainda, foi um escritor beneficiado por ter sido do Partido Comunista e ter contado com sua estrutura para uma divulgação monumental pelo mundo; o que não nos impede de constatar seu valor próprio, de um talentoso contador de histórias e um dos criadores da “mitologia baiana”.
Considerando tudo isso, tentei agarrar a essência dessa obra, despretensiosa na narrativa que se permite ser fácil e saborosa, picaresca até, às vezes apelativa, mas também grandiosa no seu imenso painel de tipos humanos que parecem tirados da vida real.
Acho que é uma grande obra de caricatura, tomada no seu melhor sentido, e isso é o que permitiu que um caricaturista como eu a compreendesse e tentasse transpor para a HQ.

BDBD - E Jorge Amado chegou a conhecer esta tua versão?
S - Infelizmente, não, e nem Zélia, sua esposa. Os familiares, sim, tive alguma notícia de que uma neta gostou muito.
A resposta dos baianos tive face a face, quando fiz um lançamento em Salvador e fui sabatinado numa entrevista prazeirosamente severa, promovida pela Academia de Letras Baiana. No final, uma professora foi me cumprimentar por eu ter sido “macho” por ter aceitado o desafio, e acho que me saí bem.

BDBD - De um modo geral, na tua já admirável obra, focas temas sérios, mas com um certo toque humorístico, quase caricatural no traço. É uma ideia intencional?
S - Mais que ideia, é uma inclinação natural. A caricatura, além de brincar, é um modo de conhecer uma pessoa ou coisa mais profundamente, e expressar salientando seus traços essenciais. Gosto mais de expressar a graça natural que encontro, do que impor ao meu objecto uma graça postiça.
Acho o humor absolutamente compatível com a seriedade.
Só refreio, às vezes, por pudor, levar a brincadeira muito adiante.
Acredito que é preciso dosar o humor com compaixão e refrear o impulso sádico diante de certas fragilidades.
É por isso que, apesar de obviamente ter ficado chocado com aquele atentado aos cartunistas, “je ne suis pas Charlie”.


BDBD - No Brasil, é difícil a carreira para um desenhista?
S - Sim, e tem ficado mais difícil. À medida em que aumentaram as facilidades para estudar e desenhar, graças aos fantásticos meios da informática, consequentemente os espaços para absorver ilustradores diminuíram.
Não só isso: o modelo comercial que unia revistas e anunciantes foi quebrado com a democratização da informação.
Como consumidor de conhecimento não posso reclamar, mas como fornecedor de desenhos a vida ficou mais difícil.

BDBD - Já vieste a Portugal a três festivais de BD: Portocartoon em 2010, Amadora em 2011 e Beja em 2015. Como analisas estas tuas três presenças?
S - Há tantos aspectos...
Primeiro, por ter feito o “D.João Carioca”, queria muito que os portugueses conhecessem meu trabalho. Infelizmente, as negociações dos editores daí com minha editora não seguiram adiante.
Depois, tem o interesse pela cultura portuguesa, que todo brasileiro faz alguma idéia do que seja, e está afundada num oceano de estereótipos que escondem o quanto somos semelhantes.
Mais ainda: a elite cultural brasileira obedeceu aos modernistas paulistas, e cortou mesmo relações com a herança portuguesa – ou seja, com a nossa própria História.
Vivemos hoje numa miséria intelectual e cultural tão grande, que nem música brasileira temos mais – os mesmos hits são regravados em roupagens cada vez mais pobres, e o “funk pancadão” é a última versão da barbárie musical.
E ainda mais: demagogos da língua ficam ensinando que o português correto é a “norma culta” falada pelas elites (falsíssimo, nossas elites sempre foram burras e quem cultivou a língua foram pobretões e descendentes de escravos), estimulando o povo da periferia a permanecer no idioma do seu bairro. Isto é mais perverso que o aparheid, é mais um isolamento que impede o brasileiro de conhecer sua língua e sua história.
Em cima: João Amaral, Luís Louro, Carlos Rico e Luiz Beira.
Em baixo: Jorge Machado Dias e Spacca, no FIBD de Beja, em 2015.
De modo que é preciso, é vital, redescobrirmos a cultura luso-brasileira, nosso tronco. Sem isso, o Brasil vai morrer.
Terceiro aspecto: conhecer alguns bambas da Nona Arte e trocar figurinhas com amantes da HQ. Isso é outra coisa muito preciosa. Uma das minhas referências mais importantes é a BD europeia, e certamente minhas idas aí acentuaram essa predilecção.

BDBD - Qual é a tua próxima (e quando) obra a ser editada?
S - É a biografia em HQ do padre Pio de Pietrelcina, um santo italiano, feita para uma fundação do mesmo nome, que mantém um site na internet (padrepauloricardo.org). Termino de fazer este semestre, não sei quando conseguem editar.

BDBD - Quando pensas voltar a Portugal?
S - Ah, não sei. Na última vez percorremos o sul até o meio, falta conhecer o norte e o interior... Quando as finanças permitirem..


Muito obrigado, Spacca, pela tua gentileza de nos teres concedido esta entrevista e... até breve.
LB 






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