segunda-feira, 14 de setembro de 2015

A VIDA INTERIOR DAS REDAÇÕES DOS JORNAIS INFANTO-JUVENIS, na memória de José Ruy (11)


11) O PORQUÊ E COMO FOI CRIADO O "CAVALEIRO ANDANTE"

Pois o «Cavaleiro Andante» foi realmente criado para escoar uma quantidade enorme de papel que se acumulava nos armazéns da «Empresa Nacional de Publicidade» a que o Diário de Notícias pertencia. Este importava da Finlândia o papel em bobinas mas o seu tamanho na largura excedia a medida da rotativa e o formato do jornal. As bobinas eram serradas no excedente produzindo pequenas frações que se iam acumulando. Numa tiragem diária de 100 mil exemplares pode-se calcular a velocidade a que os armazéns ficavam lotados.
Que fazer a tanto papel? Era um desperdício mandá-lo para a reciclagem. Foi aí que o inventivo José Gonçalves pensou num pequeno jornal infanto-juvenil onde aplicasse esse papel dando assim vasão às bobinas. Encomendou uma rotativa Offset com esse formato e foi assim que o «Cavaleiro Andante» surgiu sujeito àquela medida, e substituindo o «Diabrete».

Era uma rotativa deste género que
imprimia o "Cavaleiro Andante"
Capas do "Diabrete"

Esta rotativa tinha 60 centímetros de largura e utilizava as tais bobinas excedentes. Portanto este jornal nasceu com papel já pago e reunia todas as condições para dar certo.
Nada se desperdiçava naquela empresa. Tudo se transformava num ciclo de reaproveitamento. Um dia poderei contar pormenores de recuperações inimagináveis, de produtos que hoje vejo deitar para o lixo sem a preocupação de os reutilizar.
Durante o período da colaboração que mantive durante alguns anos n’O Cavaleiro Andante, criei várias histórias.
"A Mensagem", "Ubirajara" do escritor brasileiro José de Alencar, e "O Bobo", de Alexandre Herculano
Quando estava a terminar a publicação de «O Bobo», o Simões Müller perguntou-me o que pensava fazer a seguir. Tinha entretanto descoberto a «Peregrinação» através do Teixeira Coelho, que até já a havia iniciado em HQ com apenas três tiras de propósito para a primeira exposição de Histórias em Quadrinhos, no Palácio da Independência em Lisboa, em 1952.
A "Peregrinação" de Fernão Mendes Pinto
O Coelho antes de partir para França sugeriu-me que fizesse essa história, pois ele não a ia continuar nem planeava fazê-lo mais tarde. Em França dedicar-se-ia a outro tipo de temas, como aconteceu. Depois de ler esse original fiquei apaixonado, por isso disse ao Müller que era essa a história seguinte.
Ele torceu o nariz, Fernão Mendes Pinto confessava nos seus escritos ter sido pirata… porque não fazia eu antes os «Fumos da Índia»? Mas encontrava-me bastante determinado, e durante umas semanas fui argumentando com o Müller, que se tratava de uma história com empolgantes aventuras, que tinha episódios históricos e até de heroísmo em locais exóticos. Anuiu por fim, depois de lhe mostrar algumas pranchas que havia já adiantado.
Essa adaptação estendeu-se por 75 semanas, e as reações que chegaram à redação foram todas positivas.
Claro que tive o cuidado de construir a personagem sem barba, para se afastar o mais possível do aspeto do «pirata padrão, barbudo e com pala no olho», que o cinema da altura nos mostrava e através das séries inglesas em quadrinhos.
Talvez por isso a censura não me tenha incomodado, embora o Fernão Mendes Pinto fosse considerado pelos mentores dos bons costumes na época, um escritor maldito.
Vinte e dois anos depois viria a reformular essas pranchas para publicação em livro, inserindo balões nas vinhetas, conseguindo assim um maior dinamismo na narrativa.
Uma prancha original, acervo do CNBDI, e uma página impressa da versão em livro. 
O José Gonçalves era um grande admirador do Teixeira Coelho e por várias vezes me deu a conhecer. Um dia, sabendo da minha ligação de amizade com o Coelho, perguntou-me se ele aceitaria trabalhar para o «Cavaleiro Andante». Disponibilizei-me para o contacto pois nessa altura encontrava-se já em França. Começou por fazer capas para os números especiais e a sua história «Harpa de Ouro» foi mesmo publicada no «Cavaleiro Andante». Mas por vontade do José Gonçalves.
Duas das várias capas que Teixeira Coelho desenhou
para números especiais de "O Cavaleiro Andante"
Também a série "Falcão Negro", novela criada por Raúl Correia n' "O Mosquito" e depois passada a banda desenhada com argumentos de Eduardo Teixeira Coelho foi publicada neste jornal. Esta capa foi feita de propósito para o "Cavaleiro Andante"
Conto um episódio inusitado acontecido ainda em tempo do «Diabrete», que mostra como funcionava a redação deste jornal.
«O Mosquito» fazia permuta dos desenhos do Teixeira Coelho com o jornal «Chicos» de Espanha, recebendo os de Jesus Blasco, Emílio Freixas e outros autores. O Tiotónio tirava provas de prelo em papel cristal das ilustrações do Coelho, que serviam de fotólitos para a impressão no jornal «Chicos», e enviava-as pelo correio. A Consuelo Gil, diretora desse jornal, utilizava esses desenhos soltos para ilustrar novelas escritas de propósito pelos seus colaboradores, inspiradas nas cenas explícitas nessas ilustrações.
Do jornal "Chicos"
Exemplo de como em Espanha aproveitavam os desenhos do Teixeira Coelho publicados n'O Mosquito para ilustrar contos e novelas, muitas feitas a partir das imagens, inventando argumentos a condizer com as cenas criadas, nada tendo a ver com as histórias portuguesas originais.
Por sua vez o jornal «Chicos» vendia para Portugal, para o Simões Müller, desenhos da Pili Blasco, irmã do Jesus Blasco e de outros autores espanhóis que eram publicados no «Diabrete».
Certa vez num desses lotes, por distração, vieram juntos desenhos do Teixeira Coelho, já publicados n’«O Mosquito» e no «Chicos». Na redação do «Diabrete» não se aperceberam que esses desenhos não eram espanhóis, e publicaram-nos. Claro que o Raul Correia e o Tiotónio reclamaram de imediato. Espantado, o Müller pediu imensa desculpa, pois não tinha reparado que eram desenhos do Teixeira Coelho.
Era evidente que não lia «O Mosquito» e não o observava, como os diretores deste jornal faziam com todas as publicações concorrentes existentes na altura. Era preciso estar atento ao que se publicava à volta. Fazia parte da ética.

Mas tudo tem os dias contados e o «Cavaleiro Andante» terminou a sua «cavalgada». No entanto para escoar o muito material que o Simões Müller havia adquirido aos franco-belgas, criaram a «Nau Catrineta» como suplemento integrado no «Diário de Notícias».
Embora já a trabalhar em outra empresa, continuei a colaborar com desenhos para essa publicação.

(continua)



No próximo artigo: O "TINTIN" PORTUGUÊS

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