quarta-feira, 22 de julho de 2020

MEMÓRIAS DE JOSÉ GARCÊS (1928-2020)


José Garcês
(23/07/1928-15/07/2020)
Passou já uma semana desde que o Ricardo me ligou e disse, de forma serena e conformada: "O meu pai faleceu, Carlos!"
Embora nunca se esteja verdadeiramente preparado para uma notícia destas, a verdade é que há algum tempo que todos temíamos este desenlace. Não foi, por isso, uma surpresa. Mas foi, naturalmente, um choque ouvir que José Garcês - o Sr. Garcês, como eu, de forma carinhosa e respeitadora o gostava de tratar -, fazedor de histórias aos quadradinhos e de construções de armar absolutamente preciosas, nos tinha deixado...
José Garcês, com os seus 91 anos (faltavam-lhe poucos dias para completar 92 quando faleceu), é alguém de quem eu tenho muitas e gratas memórias. Aqui vos deixo algumas...
Muito antes de conhecer José Garcês pessoalmente, já eu admirava o seu trabalho. Admirava, em especial a forma como desenhava os cavalos, sempre com crinas e caudas enormes desfraldadas ao vento. Quem tiver dúvidas sobre a autoria de um desenho de José Garcês, veja os seus cavalos, únicos e inimitáveis, e essas dúvidas dissipar-se-ão de imediato. 
Diga-se que Garcês era um especialista no desenho de animais. Tigres, leões, elefantes, girafas, antílopes, búfalos, raposas, pavões, águias... qualquer bicho desenhado por José Garcês era uma obra-prima. Basta pegar no seu álbum dedicado ao Jardim Zoológico de Lisboa ou num outro dedicado ao Lince Ibérico para se perceber do que estou a falar. E por falar nisto, lembrei-me agora que este álbum do Lince Ibérico foi lançado em Moura, há alguns anos! Mais uma memória - entre tantas outras - que agora me surgiu...
À esquerda, capa de "O Falcão", onde se pode observar um dos célebres cavalos
de crinas ao vento desenhado por Garcês. À direita, capa do álbum "Jardim Zoológico de Lisboa".
Capa e prancha de "Lince Ibérico - sua história em Portugal", que teve o seu lançamento oficial em Moura,
em Junho de 2011 (ver imagens abaixo).
 

Mas, como ia dizendo, muito antes de conhecer pessoalmente José Garcês, já eu admirava o seu belo traço. Teria eu uns oito anitos quando os meus pais me ofereceram um livro de passatempos, com umas ilustrações que me despertaram imenso a atenção. Na altura eu não sabia (até porque os desenhos não estavam assinados nem identificados na ficha técnica) mas tratava-se de ilustrações de José Garcês. Só muito mais tarde, quando aprendi a reconhecer o traço, percebi isso.

Duas das ilustrações de Garcês, in "Passatempos 2" - Ed. SEL - Sociedade Editorial Ld.ª (meados dos anos 70).


Depois, aos poucos, tomei conhecimento de outros trabalhos deste mestre da BD, em revistas antigas que colecciono e, em especial, em alguns álbuns que, aqui e ali, ia comprando para enriquecer a minha bedeteca: "O Tambor" (com texto de Jorge Magalhães), "Eurico, o Presbítero" (adaptação da obra de Alexandre Herculano), "D. João V, uma vida romântica" (com texto de Mascarenhas Barreto), "O Falcão"... entre muitos outros.
Alguns exemplos de álbuns de Garcês da minha Bedeteca pessoal

Chegamos a 1992, ano em que visitei, pela primeira vez, o salão da Sobreda (organizado pelo meu parceiro de blogue, Luiz Beira). Aí comecei a travar conhecimento com os grandes nomes da BD nacional e europeia. José Garcês lá estava, também, entre os desenhadores convidados, destacando-se pelos seus cabelos (já) brancos, penteados para trás, fato elegante, postura séria, de início, mas, depois de algum tempo de convívio, de trato agradável e fraternal.
José Garcês (o quinto a contar da esquerda), durante uma sessão colectiva de homenagens a
banda desenhistas na Sobreda BD. 
Em 1995, propus que fosse José Garcês o autor em destaque no salão Moura BD. Prestes a cumprir, dentro de alguns meses, cinquenta anos de carreira, achei que seria a altura certa para o homenagearmos. Assim aconteceu. 
Lembro-me de ter ido a sua casa, na Amadora, recolher os trabalhos que iríamos expor no salão, e de ter ficado encantado com uma série de quadros pendurados nas paredes do corredor, com maravilhosos motivos medievais realizados a tinta da China e aguarela
Em 1995, o salão de Moura dava os seus primeiros passos e não tinha ainda as condições que, com o tempo, viria a adquirir. O espaço era curto e a exposição ficou muitíssimo aquém daquilo que José Garcês merecia. Ainda assim, a homenagem foi bonita, e teve a particularidade de ter sido a primeira vez que o Troféu Balanito foi instituído. Coube, pois, a Garcês ser o primeiro desenhador a receber o Troféu Balanito de Honra. Desde essa altura, sempre que o visitei no seu estúdio, Garcês apontava para a estante e mostrava-me, orgulhoso e sorridente, o "troféu de Moura".
Pormenor da sala principal do salão. Ao centro algumas pranchas de José Garcês.
Garcês no uso da palavra durante a sessão de homenagem de que foi alvo em Moura, em 1995.
Da esquerda para a direita: Baptista Mendes, Artur Correia, eu, José Garcês,
Manuela Colaço (Presidente da Junta da Sobreda) e Eng.º Manuel Mestre (Presidente da Câmara de Moura). 
Passámos a encontrar-nos regularmente em festivais e salões, onde ele e a esposa Manuela apareciam, quase sempre, acompanhados dos casais amigos Artur/Belmira Correia, e Carlos/Amélia Baptista Mendes. 
Moura, Viseu, Amadora ou Sobreda eram pontos de encontro anuais que nos permitiam manter contacto, trocar impressões, esclarecer dúvidas... e matar saudades, que era o mais importante.
Garcês dialogando com Zé Manel e Rá, durante o salão Moura BD 2004.
Garcês e Artur Correia, amigos de longa data, visitaram o Moura BD durante anos a fio.
Aqui os vemos durante a sessão de encerramento do salão de 2004.
Com a esposa Manuela e Belmira Correia, durante o almoço-convívo do Moura BD 2004
José Garcês, eu, Luiz Beira e Sergei, no Festival da Amadora (2006)
Uns anos depois, trouxemos até Moura a bela exposição "Desenhar a Música" (numa parceria com o extinto CNBDI), onde Garcês (e a esposa Manuela) estiveram presentes na inauguração.
Uma das ilustrações da exposição "Desenhar a Música"
Em 2009, Garcês participou, também, no projecto colectivo "Salúquia: a lenda de Moura em banda desenhada", realizando uma história em três pranchas, no seu peculiar estilo. Lembro-me que, quando lhe demos um prazo de dois meses para entregar a sua participação, protestou imenso dizendo que era muito pouco tempo, até porque tinha outro álbum para terminar entre mãos. Não sei como resolveu o assunto mas a verdade é que nos entregou as três pranchas de Salúquia a tempo e horas e sem perda de qualidade.
Pranchas 1 e 2 de "A Lenda da Moura Salúquia" (2009)


Talvez um ano mais tarde, ainda entusiasmado com o tema de Salúquia, telefonou-me e propôs-se fazer a história da cidade de Moura em BD (e não apenas a lenda). Reencaminhei a proposta a quem de direito mas, por razões várias, o projecto foi ficando sempre em stand-by, nunca chegando a passar dessa fase. Garcês telefonava-me, semanalmente, tentando saber se sempre era para avançar ou não: "Olhe que eu agora, já com oitenta e muitos, ainda desenho, Carlos Rico, mas, de um momento para o outro, isto tudo muda!".
Como estava certo o José Garcês! Num instante tudo muda, de facto...
Passaram-se apenas alguns anos. O GICAV convidou-me para restaurar e paginar a história "Viriato", publicada originalmente no Cavaleiro Andante, a fim de ser recuperada em álbum. Uma casual troca de impressões entre mim e Garcês (registada sob a forma de notas numa das páginas finais do álbum), revelou-nos informações preciosas acerca de como "Viriato" fora produzido. Essa foi, para mim, a parte mais gratificante nesse trabalho que, diga-se, deixou Garcês extremamente satisfeito com o resultado final, apesar de algumas dúvidas iniciais (Garcês não gostava, especialmente, de ver reeditada esta história por ser uma das suas primeiras e considerar que não teria suficiente qualidade...).

Capa e prancha de "Viriato" - Ed. Gicav / Câmara Municipal de Viseu (2015)

Garcês publicou ainda, depois disso, mais dois álbuns, "História de Silves" e "Santo António de Lisboa" (este último onde era bem notória a decadência no traço, devido à idade avançada e a problemas na visão). 
O último álbum de Garcês,
Santo António em banda desenhada
Até que, vencido pela idade, foi obrigado - é este o termo - a colocar de lado os pincéis e os lápis. 
Um dia, liguei-lhe, como habitualmente, para saber notícias. Fiquei desolado quando, do outro lado da linha, uma voz ofegante e triste me disse: "Carlos Rico, eu já não desenho! A minha vista não deixa!..."
...
O seu estado de saúde foi piorando de forma gradual. Uma vez fui visita-lo a casa, aproveitando uma deslocação ao Festival da Amadora.
Eu, o Luiz Beira, o Carlos Gonçalves, o Carlos Moreno e o nosso motorista Tói Pio, fomos recebidos por um Garcês já muito frágil, mas de braços estendidos e sorriso na cara.
No pouco tempo que demorámos (talvez um quarto de hora, pois não queríamos de todo cansa-lo nem incomoda-lo) procurou na estante um exemplar do seu trabalho mais recente, a "História de Silves", para me oferecer. "Obrigado, Sr. Garcês, mas a sua editora enviou-me um exemplar para casa!" - disse-lhe eu, arrependido ainda antes de terminar a frase, por lhe ter roubado, inconscientemente, aquele momento de prazer. Virou-se para o Luiz Beira, o Carlos Gonçalves e o Carlos Moreno e obteve a mesma resposta: todos eles já tinham o álbum. Restava o nosso motorista. "Tem algum filho a quem possa interessar este livro?" - perguntou-lhe o Garcês, já pouco crente. "Tenho sim, uma menina!" - respondeu o Tói. "Então tome! Ofereço-lho com muito gosto!" - disse, finalmente, com um grande  e contagiante sorriso.
Só por isso valeu a pena aquela visita.
Foi a última vez que nos vimos, é certo, mas gosto de pensar para comigo que a derradeira imagem que me ficou de José Garcês foi a de um homem feliz.
Que descanse em paz!
Carlos Rico

Nota: Em meu nome e em nome do Luiz Beira, deixo aqui um voto de condolências à família, em especial ao filho Ricardo, que acompanhou o pai algumas vezes nas deslocações aos salões de Moura e Sobreda, e com quem chegámos a encetar contacto, há alguns meses, para produzir uma exposição de homenagem a José Garcês... A exposição-homenagem acabará por se fazer no próximo ano, logo que as circunstâncias o permitirem, mas infelizmente já a título póstumo.


José Garcês recebendo das mãos do Presidente da Câmara de Moura,
Eng.º Manuel Mestre, o Troféu Balanito de Honra (1995)
Garcês no seu estirador, trabalhando numa prancha
O Mosteiro da Batalha, uma das mais fabulosas construções de armar desenhadas por Garcês,
das quais era um exímio e reconhecido especialista.
Artur Correia, José Garcês e Osvaldo de Sousa, observando a decoração do tecto do salão Moura BD 2004.

1 comentário:

  1. Conheci muito bem esse Senhor, com quem tive o prazer de trabalhar, educado, cumpridor de datas e sempre compreensivo! Foram anos Como colaborados da Verbo Escolar! Lamentei muito a sua Passagem, pois já não o via há bastante tempo mas sempre estive atenta ás suas ilustrações! >Paz à sua Alma e sentidos Pêsames à Família!
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