Eu e o Jorge Magalhães, observando revistas com trabalhos de Caprioli, na exposição comemorativa do Centenário do Nascimento deste autor, ocorrida em Moura, em 2012. |
Chamava-se Jorge. Ou melhor… chama-se Jorge, porque o Jorge não morreu. Continuará presente na minha vida e na vida de muitos outros. Especialmente daqueles que gostam de banda desenhada.
Foi através do meu parceiro de blogue, Luiz Beira, que contactei com o Jorge pela primeira vez, em 1999, durante uma visita às Jornadas BD da Sobreda.
Um ano depois, em 2000, o Salão Moura BD tinha como tema o “Western”. O Beira disse-me que o Jorge Magalhães era um grande entusiasta e entendido no assunto e eu lembrei-me de o convidar a escrever um texto para inserir no programa-catálogo.
Embora eu já conhecesse o Jorge Magalhães enquanto argumentista, articulista e coordenador editorial, apenas nos tínhamos cruzado, entre os diversos salões e festivais que ambos habitualmente frequentávamos, nessa tal vez na Sobreda.
Foi, pois, com alguma timidez que lhe telefonei e lhe disse o que pretendia. Do outro lado respondeu-me a voz de um homem afável e educado, que, vez por outra, gaguejava quando as palavras não acompanhavam o ritmo alucinante do seu raciocínio, e que usava com alguma frequência a expressão “Bem entendido”, quando queria esclarecer melhor alguns pontos da conversa.
O Jorge disse-me que, por coincidência, até tinha um texto - intitulado “O Western na BD Portuguesa” - que começara a escrever em tempos e que estava "praticamente" terminado (como mais tarde eu perceberia, para o Jorge os seus textos nunca estavam verdadeiramente terminados; havia sempre mais qualquer coisa a acrescentar ou a rever…) mas que não sabia se caberia no catálogo.
- Quanto espaço é que vocês têm? - perguntou.
Eu respondi que umas quatro páginas A5, no máximo.
- Isso não chega nem para metade do texto! - retorquiu ele do outro lado do telefone.
Propus-lhe, então, a publicação de uma brochura fotocopiada, sem limite de páginas e com ilustrações em preto e branco, para distribuição gratuita pelos visitantes. O Jorge, com a humildade e a simpatia que o caracterizavam, concordou com a proposta e não colocou qualquer entrave, apesar do aspecto verdadeiramente modesto da edição.
Sete anos depois, a Câmara de Moura reeditaria este opúsculo, numa edição de luxo a cores, revista e aumentada, que deixou o Jorge satisfeitíssimo.
Tratava-se do segundo número da Colecção “J.M.”, título que ele, a princípio e por modéstia, não queria utilizar mas que, por insistência minha, acabou por aprovar, chegando um dia a dizer-me, com indisfarçável sorriso nos lábios, que, para além dele, mais ninguém se poderia orgulhar, no meio bedéfilo português, de ter uma colecção com o seu próprio nome.
Capas da primeira e segunda edições de "O Western na BD Portuguesa" (2000 e 2007) Edição da Câmara Municipal de Moura |
Encetámos, assim, uma relação cordial que rapidamente se transformou numa grande amizade, com vários episódios que valeria a pena aqui focar, mas que deixaremos para uma outra ocasião, de maneira a não tornar este texto ainda mais extenso.
Uns anos depois, em 2015, publiquei um post num outro blogue, acerca do meu western favorito: “Shane”.
O Jorge leu o post e comentou-o, dizendo que esse também era um dos seus filmes de eleição e acrescentando que o argumento fora extraído de um excelente livro de Jack Schaefer, com edição em português.
Ao perceber que eu desconhecia este facto, o Jorge prometeu emprestar-me o livro na próxima vez que nos encontrássemos.
O tempo, contudo, foi passando e eu acabei por (quase) esquecer este assunto, pensando que o Jorge - assoberbado com projectos - também o tivesse esquecido.
Até que, em Junho último, me desloquei em serviço a Cascais (onde o Jorge vivia) e, naturalmente, logo combinámos tomar um rápido cafezinho, só para matar saudades.
Assim aconteceu.
Eu, a Catherine e o Artur Jr. (filho do malogrado Artur Correia, e também morador em Cascais) sentámo-nos na esplanada de uma pastelaria que fica em frente à casa da Catherine e do Jorge, enquanto aguardávamos por este, que ficara a procurar qualquer coisa.
Quando finalmente apareceu, trazia na mão uma pasta amarela. Sentou-se ao meu lado, abriu a pasta e dela retirou um pequeno livrinho de bolso. Na capa do livro, em letras vermelhas, a palavra “Shane” e por baixo, numa moldura oval, a imagem de um vaqueiro cavalgando no deserto.
- Tome, Carlos, é para si! Comprei-o num alfarrabista de propósito para lhe oferecer! – disse-me o Jorge, tentando esconder um sorriso mal disfarçado.
Completamente surpreendido - com um sorriso que, pelo contrário, não disfarcei -, peguei no livro e, em segundos, apreciei a capa, folheei e cheirei algumas páginas e li, rapidamente, as primeiras duas linhas.
- E aqui tem a versão em filme, que lhe arranjei na semana passada! - acrescentou de seguida, estendendo-me uma caixa de DVD com a figura de Alan Ladd na capa, quase sem me dar tempo para agradecer tanta amabilidade.
As prendas do Jorge, que guardarei para sempre com especial carinho |
O Jorge era uma pessoa importante neste pequeno grupo a que chamamos “bedéfilos”.
Era mesmo muito importante. Ele fez tanta coisa pela BD, ao longo da vida!... Além de leitor e coleccionador, foi investigador de prestígio, argumentista ímpar, tradutor, chefe de redacção de várias revistas, coordenador editorial, editor de fanzines, publicou artigos em inúmeros jornais e revistas… Ultimamente, optara por publicar os seus textos em blogues, que ia criando à medida que necessitava de falar sobre assuntos diferentes (O Western, Caprioli, “O Mosquito”…).
O Jorge, para além de ser uma autêntica Enciclopédia viva, era extremamente rigoroso no trabalho.
Por isso atingiu um patamar onde muito poucos conseguiram chegar e menos ainda se conseguiram manter.
“Carlos, ao escrevermos um texto ou paginarmos um livro, não devemos descurar nenhum detalhe pois quando é que isto poderá ser reeditado outra vez? Se calhar nunca mais…” - dizia-me ele, numa das longas conversas que mantínhamos ao telefone, que por vezes duravam mais de duas horas, mas que hoje me parecem insuficientes e breves.
Ah, como eu gostaria de conversar uma vez mais com o Jorge - uma vez só que fosse!…
Conversaríamos, como sempre, sobre o Caprioli, o Carlos Gimenez, o Geoff Campion ou qualquer outro dos grandes desenhadores clássicos europeus...
Ou sobre os nossos Péon, Bento e Coelho...
Ou sobre “O Mosquito”, o “Cavaleiro Andante” e o “Mundo de Aventuras”...
Ou sobre o Trigo, o Jobat e o Carlos Roque, que ele admirava profundamente como artistas e como Amigos.
Ou sobre o salão e as publicações de Moura, que o Jorge sempre cobria de elogios.
Ou sobre o “Shane” e outros western de referência.
Ou sobre o Garra d’Aço, o Gringo, o Major Alvega e tantos outros personagens famosos, hoje praticamente esquecidos pelo público mas que o Jorge recordava como um menino de oito anos...
Ou sobre um milhão de coisas mais…
Um dia, certamente, essa conversa acontecerá. Será inevitável.
Até lá, resta-me pensar que tive muita sorte por ter privado de perto com alguém da dimensão humana e profissional do Jorge, que, com o seu exemplo, me ajudou a ser uma pessoa melhor.
Até sempre, Jorge!
Carlos Rico
Em 2000, na primeira vez que visitou Moura, observando a exposição sobre "O Western", com o desenhador José Pires, com quem manteve uma estreita amizade e colaboração. |
Recebendo o "Troféu Balanito Especial", durante a cerimónia de Encerramento do salão Moura BD 2002. |
Em 2007, no Salão Moura BD, observando atentamente a exposição "Coleccionando Tex" |
Com Fabio Civitelli, durante o salão Moura BD 2007 |
Em Moura (2007), com a sua companheira, Catherine Labey, durante o almoço de confraternização do festival |
Com o casal Amélia e Carlos Baptista Mendes e com João Amaral, à porta do Cine-Teatro Caridade, após a sessão de homenagens do salão Moura BD (2007) |
Com Luiz Beira, Carlos Rico e Maria José Silva (Vereadora da C.M. de Moura) durante a inauguração da exposição comemorativa do Centenário de Franco Caprioli (Junho de 2012) |
Em Viseu, numa foto de grupo durante a inauguração da exposição de Franco Caprioli (Agosto de 2012) |
Com António Amaral, Catherine Labey e António Mata, durante a inauguração da exposição de Franco Caprioli, em Viseu |
Com Pedro Massano, durante o almoço de confraternização do salão Moura BD 2013 |
Com António Amaral, durante o Moura BD 2013. |
Em 2013, com Leonardo De Sá nas ruas de Moura, de visita ao último salão daquela cidade |
Nota: os créditos de algumas das imagens que ilustram este post são de Jorge Machado Dias, Dâmaso Afonso, Cristina Amaral, Osvaldo de Sousa, José Carlos Francisco e do arquivo fotográfico da CM Moura. A todos o nosso obrigado.
Parabéns pelo belo texto. Gostei também de rever alguns velhos amigos no conjunto de fotos que o ilustra. Sinto muito pela partida do Jorge Magalhães. Saudações cordiais.
ResponderEliminarObrigado, Amâncio.
EliminarTodos nós estamos muito tristes por ver partir uma pessoa como o Jorge, é verdade.
Mas todos temos, também, a certeza de que o seu nome e a sua obra ficarão eternizados na História da BD Portuguesa.
Saudações.
Carlos Rico