sábado, 8 de dezembro de 2018

ATÉ SEMPRE, JORGE!


Eu e o Jorge Magalhães, observando revistas com trabalhos de Caprioli, na exposição comemorativa do Centenário do Nascimento deste autor, ocorrida em Moura, em 2012.

Um amigo meu partiu, há precisamente uma semana, para o panteão desta Arte que designamos por BD.
Chamava-se Jorge. Ou melhor… chama-se Jorge, porque o Jorge não morreu. Continuará presente na minha vida e na vida de muitos outros. Especialmente daqueles que gostam de banda desenhada.
Foi através do meu parceiro de blogue, Luiz Beira, que contactei com o Jorge pela primeira vez, 
em 1999, durante uma visita às Jornadas BD da Sobreda.
Um ano depois, em 2000, o Salão Moura BD tinha como tema o “Western”. O Beira disse-me que o Jorge Magalhães era um grande entusiasta e entendido no assunto e eu lembrei-me de o convidar a escrever um texto para inserir no programa-catálogo.
Embora eu já conhecesse o Jorge Magalhães enquanto argumentista, articulista e coordenador editorial, apenas nos tínhamos cruzado, entre os diversos salões e festivais que ambos habitualmente frequentávamos, nessa tal vez na Sobreda.

Foi, pois, com alguma timidez que lhe telefonei e lhe disse o que pretendia. Do outro lado respondeu-me a voz de um homem afável e educado, que, vez por outra, gaguejava quando as palavras não acompanhavam o ritmo alucinante do seu raciocínio, e que usava com alguma frequência a expressão “Bem entendido”, quando queria esclarecer melhor alguns pontos da conversa.
O Jorge disse-me que, por coincidência, até tinha um texto - intitulado “O Western na BD Portuguesa” - que começara a escrever em tempos e que estava "praticamente" terminado (como mais tarde eu perceberia, para o Jorge os seus textos nunca estavam verdadeiramente terminados; havia sempre mais qualquer coisa a acrescentar ou a rever…) mas que não sabia se caberia no catálogo.
- Quanto espaço é que vocês têm? - perguntou.
Eu respondi que umas quatro páginas A5, no máximo.
- Isso não chega nem para metade do texto! - retorquiu ele do outro lado do telefone.
Propus-lhe, então, a publicação de uma brochura fotocopiada, sem limite de páginas e com ilustrações em preto e branco, para distribuição gratuita pelos visitantes. O Jorge, com a humildade e a simpatia que o caracterizavam, concordou com a proposta e não colocou qualquer entrave, apesar do aspecto verdadeiramente modesto da edição.
Sete anos depois, a Câmara de Moura reeditaria este opúsculo, numa edição de luxo a cores, revista e aumentada, que deixou o Jorge satisfeitíssimo.
Tratava-se do segundo número da Colecção “J.M.”, título que ele, a princípio e por modéstia, não queria utilizar mas que, por insistência minha, acabou por aprovar, chegando um dia a dizer-me, com indisfarçável sorriso nos lábios, que, para além dele, mais ninguém se poderia orgulhar, no meio bedéfilo português, de ter uma colecção com o seu próprio nome.

Capas da primeira e segunda edições de "O Western na BD Portuguesa" (2000 e 2007)
Edição da Câmara Municipal de Moura
O Jorge, acompanhado pela sua inseparável companheira Catherine, visitou o Moura BD 2000 e desde logo ficou encantado com o ambiente do salão e com a qualidade das exposições. Foi, a partir daí, um admirador incondicional e uma visita regular do mesmo (seria muito justamente premiado com o Troféu Balanito Especial, em 2002).
Encetámos, assim, uma relação cordial que rapidamente se transformou numa grande amizade, com vários episódios que valeria a pena aqui focar, mas que deixaremos para uma outra ocasião, de maneira a não tornar este texto ainda mais extenso.
Uns anos depois, em 2015, publiquei um post num outro blogue, acerca do meu western favorito: “Shane”.
O Jorge leu o post e comentou-o, dizendo que esse também era um dos seus filmes de eleição e acrescentando que o argumento fora extraído de um excelente livro de Jack Schaefer, com edição em português.
Ao perceber que eu desconhecia este facto, o Jorge prometeu emprestar-me o livro na próxima vez que nos encontrássemos.
O tempo, contudo, foi passando e eu acabei por (quase) esquecer este assunto, pensando que o Jorge - assoberbado com projectos - também o tivesse esquecido.
Até que, em Junho último, me desloquei em serviço a Cascais (onde o Jorge vivia) e, naturalmente, logo combinámos tomar um rápido cafezinho, só para matar saudades.
Assim aconteceu.
Eu, a Catherine e o Artur Jr. (filho do malogrado Artur Correia, e também morador em Cascais) sentámo-nos na esplanada de uma pastelaria que fica em frente à casa da Catherine e do Jorge, enquanto aguardávamos por este, que ficara a procurar qualquer coisa.
Quando finalmente apareceu, trazia na mão uma pasta amarela. Sentou-se ao meu lado, abriu a pasta e dela retirou um pequeno livrinho de bolso. Na capa do livro, em letras vermelhas, a palavra “Shane” e por baixo, numa moldura oval, a imagem de um vaqueiro cavalgando no deserto.
- Tome, Carlos, é para si! Comprei-o num alfarrabista de propósito para lhe oferecer! – disse-me o Jorge, tentando esconder um sorriso mal disfarçado.
Completamente surpreendido - com um sorriso que, pelo contrário, não disfarcei -, peguei no livro e, em segundos, apreciei a capa, folheei e cheirei algumas páginas e li, rapidamente, as primeiras duas linhas.
- E aqui tem a versão em filme, que lhe arranjei na semana passada! - acrescentou de seguida, estendendo-me uma caixa de DVD com a figura de Alan Ladd na capa, quase sem me dar tempo para agradecer tanta amabilidade.
As prendas do Jorge, que guardarei para sempre com especial carinho
O Jorge era uma pessoa importante neste pequeno grupo a que chamamos “bedéfilos”.
Era mesmo muito importante.
Ele fez tanta coisa pela BD, ao longo da vida!... Além de leitor e coleccionador, foi investigador de prestígio, argumentista ímpar, tradutor, chefe de redacção de várias revistas, coordenador editorial, editor de fanzines, publicou artigos em inúmeros jornais e revistas… Ultimamente, optara por publicar os seus textos em blogues, que ia criando à medida que necessitava de falar sobre assuntos diferentes (O Western, Caprioli, “O Mosquito”…).
O Jorge, para além de ser uma autêntica Enciclopédia viva, era extremamente rigoroso no trabalho.
Por isso atingiu um patamar onde muito poucos conseguiram chegar e menos ainda se conseguiram manter.
“Carlos, ao escrevermos um texto ou paginarmos um livro, não devemos descurar nenhum detalhe pois quando é que isto poderá ser reeditado outra vez? Se calhar nunca mais…” - dizia-me ele, numa das longas conversas que mantínhamos ao telefone, que por vezes duravam mais de duas horas, mas que hoje me parecem insuficientes e breves.
Ah, como eu gostaria de conversar uma vez mais com o Jorge - uma vez só que fosse!…
Conversaríamos, como sempre, sobre o Caprioli, o Carlos Gimenez, o Geoff Campion ou qualquer outro dos grandes desenhadores clássicos europeus...
Ou sobre os nossos Péon, Bento e Coelho...
Ou sobre “O Mosquito”, o “Cavaleiro Andante” e o “Mundo de Aventuras”...
Ou sobre o Trigo, o Jobat e o Carlos Roque, que ele admirava profundamente como artistas e como Amigos.
Ou sobre o salão e as publicações de Moura, que o Jorge sempre cobria de elogios.
Ou sobre o “Shane” e outros western de referência.
Ou sobre o Garra d’Aço, o Gringo, o Major Alvega e tantos outros personagens famosos, hoje praticamente esquecidos pelo público mas que o Jorge recordava como um menino de oito anos...
Ou sobre um milhão de coisas mais…

Um dia, certamente, essa conversa acontecerá. Será inevitável.
Até lá, resta-me pensar que tive muita sorte por ter privado de perto com alguém da dimensão humana e profissional do Jorge, que, com o seu exemplo, me ajudou a ser uma pessoa melhor.
Até sempre, Jorge!

Carlos Rico

Em 2000, na primeira vez que visitou Moura, observando a exposição sobre "O Western",
com o desenhador José Pires, com quem manteve uma estreita amizade e colaboração.

Recebendo o "Troféu Balanito Especial", durante a cerimónia de Encerramento do salão Moura BD 2002.

Em 2007, no Salão Moura BD, observando atentamente a exposição "Coleccionando Tex"
Com Fabio Civitelli, durante o salão Moura BD 2007

Em Moura (2007), com a sua companheira, Catherine Labey, durante o almoço de confraternização do festival
Com o casal Amélia e Carlos Baptista Mendes e com João Amaral, à porta do
Cine-Teatro Caridade, após a sessão de homenagens do salão Moura BD (2007) 

Com Luiz Beira, Carlos Rico e Maria José Silva (Vereadora da C.M. de Moura)
durante a inauguração da exposição comemorativa do Centenário de Franco Caprioli (Junho de 2012)

Em Viseu, numa foto de grupo durante a inauguração da exposição de Franco Caprioli (Agosto de 2012)

Com António Amaral, Catherine Labey e António Mata, durante a inauguração
da exposição de Franco Caprioli, em Viseu
Com Pedro Massano, durante o almoço de confraternização do salão Moura BD 2013

Com António Amaral, durante o Moura BD 2013.

Em 2013, com Leonardo De Sá nas ruas de Moura, de visita ao último salão daquela cidade

Nota: os créditos de algumas das imagens que ilustram este post são de Jorge Machado Dias, Dâmaso Afonso, Cristina Amaral, Osvaldo de Sousa, José Carlos Francisco e do arquivo fotográfico da CM Moura. A todos o nosso obrigado.

2 comentários:

  1. Parabéns pelo belo texto. Gostei também de rever alguns velhos amigos no conjunto de fotos que o ilustra. Sinto muito pela partida do Jorge Magalhães. Saudações cordiais.

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    1. Obrigado, Amâncio.
      Todos nós estamos muito tristes por ver partir uma pessoa como o Jorge, é verdade.
      Mas todos temos, também, a certeza de que o seu nome e a sua obra ficarão eternizados na História da BD Portuguesa.
      Saudações.
      Carlos Rico

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