quinta-feira, 14 de janeiro de 2016

A VIDA INTERIOR DAS REDAÇÕES DOS JORNAIS INFANTO-JUVENIS na memória de José Ruy (15)


15) "SELECÇÕES BD"

Em 1988, pouco tempo depois de ter acabado a publicação do «Tintin», a Meribérica/Líber lançou uma revista com bastante qualidade, tanto na parte artística como no aspeto gráfico: «Selecções BD».
Foi nesta revista que publiquei um curso abreviado de BD durante dez números, por sugestão da Maria José Pereira e incentivado pelo Geraldes Lino que assistira durante três anos aos cursos que ministrara no «Instituto Médiocurso», em Lisboa.

Mas não é desta revista que vou falar, pois não tive uma permanência significativa na sua redação, e o propósito destes artigos é contar histórias que passei dentro desses locais onde nascem os sonhos.
Primeira série da revista «Selecções BD»

Vou contar, então, a minha experiência na redação das «Selecções BD», mas na sua segunda série, saída à estampa em 1998.
Esta redação estava instalada no edifício da editora Meribérica, na Avenida Duque d’Ávila, n.º 26, no terceiro e último andar. Era um edifício antigo com pisos de grande pé direito e que o Telmo Protásio havia ligado internamente ao prédio contíguo que também lhe pertencia. Tinha uma claraboia lindíssima que produzia um efeito de salão de exposições na sala de reuniões da editora.
Era diretora da revista a Maria José Pereira que trabalhava na editora havia tempo com a Natália Severino, que entretanto tinha sido colocada no Brasil como diretora da Meribérica nesse país. O chefe de Redação era o Jorge Magalhães que com a sua experiência e saber conseguiu uma seleção muito criteriosa das histórias importadas de quase todos os quadrantes, como dos Estados Unidos da América, de Itália, Espanha e França. Incluía alguma colaboração portuguesa.

O seu formato era fora do normal, 30 x 23 cm, em bom papel e com a particularidade de alguns dos temas do conteúdo roçarem o erótico, portanto para um público mais adulto ou pelo menos mais crescido. Não era uma revista infantil.
Eu de há muito que tinha boas relações com o Telmo Protásio, e nessa altura ele estava interessado em publicar histórias do Eduardo Teixeira Coelho. Sabendo da nossa grande amizade pediu-me se intercedia nesse sentido e efetivamente chegou a fazer um contrato vantajoso para o autor com o objetivo de reeditar toda a sua obra publicada em Portugal e no estrangeiro, embora infelizmente esse projeto não tivesse chegado a concretizar-se.
O Teixeira Coelho entretanto havia doado todos os seus originais, independentemente dos direitos autorais, ao «Centro Nacional de Banda Desenhada e Imagem» fundado recentemente na Amadora.
Vieram pacotes de França e de Itália com mais de 4000 pranchas da série «Ragnar» e outras histórias. Os originais vinham desordenados e como para se fazer o devido registo eram precisos muitos dias, combinou-se depositá-los na redação das «Selecções BD» que os iria utilizar mais tarde para a publicação.
E quem estaria à altura de organizar esses originais? Sem dúvida alguma a única pessoa entre nós com conhecimento e aptidão para tal, o Jorge Magalhães, que se disponibilizou voluntariamente a meter ombros nessa complicada e árdua tarefa.
A redação das «Selecções BD» circunscrevia-se a uma sala, com boas janelas para a Avenida Duque d’Ávila de onde recebia boa luz e nessa altura ficou «atravancada» com todo esse material. Andavam todos sob pressão, pela responsabilidade quanto ao que tinham em mãos. Era como se o prémio de um Euromilhões fabuloso que enchesse vários cofres, se encontrasse depositado numa casa sem as mínimas condições de segurança. O Jorge Magalhães estava apreensivo por isso e o que valeu foi que poucas pessoas se aperceberam do valor daquele acervo. Para muitos eram montes de papel velho e amarelecido com bonecos desenhados.
O Coelho trabalhava os originais ao dobro da publicação, e como o «Vaillant» tinha grande formato, essas pranchas atingiam uma medida maior do que A2. Daí a razão de desenhar em tiras para ser mais cómodo, que eram depois coladas com fita gomada para formarem a página.
As tiras que o Teixeira Coelho desenhava, isoladamente, e unia depois
formando a página para entregar na revista «Vailant» 

Com os anos as fitas tinham perdido a aderência e as tiras haviam-se solto na maior parte dos originais, misturando-se numa confusão tremenda. Como o herói, «Ragnar», era comum a todas as histórias só uma pessoa que conhecesse a fundo essas aventuras saberia localizar a qual pertencia cada tira. Efetivamente esse difícil trabalho de identificação ficou a dever-se ao conhecimento e memória do Jorge Magalhães, que sendo um fervoroso admirador do E T. Coelho conhecia (e conhece) de cor todas as suas histórias.
Depois de agrupadas, essas pranchas seguiram para o «bunker» do CNBDI onde se encontram devidamente acondicionadas em placas de «pH neutro» dentro de armários de aço beneficiando de condições especiais contra ácaros, humidade, inundações e incêndio. É o arquivo mais importante (creio) da Europa, albergando neste momento cerca de 15000 pranchas originais e desenhos de esboços, croquis tirados do natural, estudos, maquetas e capas de livros, de autores nacionais e também alguns estrangeiros.
O Teixeira Coelho iniciou então uma colaboração inédita para as «Selecções BD», com ilustrações e mesmo histórias em quadrinhos.

O ambiente na redação das «Selecções BD» era agradável e calmo, onde o Jorge Magalhães dedicava muitas horas de trabalho. Perto da sua secretária havia mais umas onde se sentavam funcionárias que ajudavam na paginação. A revista era composta por histórias de continuação e algumas que se completavam em cada número, e também por artigos sobre os autores em publicação, notícias de lançamentos de livros e de Festivais de BD.
Duas rubricas interessantes: no verso da capa, em todos os números, o José Carlos Fernandes criava uma ilustração referente ao mês. Na página a seguir, a 3, porque a numeração começava na capa, o Augusto Trigo (a maioria das vezes, mas também, de quando em vez, o Carlos Roque, o Estrompa e outros) encarregavam-se de fazer humor para apresentar o sumário, sob a nota de abertura do Jorge Magalhães.

Em dada altura o Jorge Magalhães mostrou desejo de que eu fizesse uma história para sair completa num número.
Lembrei-me de uma lenda que ouvira contar numa viagem ao Médio Oriente, por um guia, e construí um argumento a partir daí. Chamei-lhe «A Estátua Perdida» e era uma história baseada na célebre cena bíblica da mulher de Loth transformada numa estátua de sal quando da destruição de Sodoma e Gomorra. Tinha 10 páginas.
Uma página de "A Estátua Perdida"
Já no ano 2000, o Jorge Magalhães, que de há muito insistia para que eu retomasse as «Lendas Japonesas» que nos anos 50 do século XX iniciara na revista «Flama», me propôs que as publicasse nas «Selecções BD». Entusiasmei-me e voltei ao tema, pois embora tivesse publicado 9 lendas sobre as traduções de Wenceslau de Moraes, muitas mais tinham ficado por desenhar. Seria interessante continuar a série com novos títulos.
No entanto resolvi refazer a primeira lenda com que tinha iniciado a rubrica em 1949, «Amaterasu a Deusa da Luz do Sol», com uma diferença de meio século.
O Jorge Magalhães fez na sua apresentação essa comparação publicando a reprodução da primeira tira saída na revista «Flama».

Eis a primeira prancha da nova versão de «Amaterasu» e também a primeira de «As Duas Rãs Curiosas», esta desenhada pela primeira vez para as «Selecções BD».

Mais tarde, em 2012, dei cor a estas páginas e iniciei a publicação na revista «Alternativa Espaço Aberto».
Seguiram-se outras lendas, mas entretanto a Editora Meribérica começou a sofrer de desequilíbrios na sua gestão, o Telmo Protásio colocara no departamento de produção uma sua familiar que entendeu de passar a procurar no espaço europeu gráficas que nos seus tempos desocupados pudessem fornecer orçamentos mais em conta. Só que uma revista periódica não pode ficar à espera de uma oportunidade dessas vinda de Espanha, Itália ou de outro país. Tinha de cumprir prazos e mesmo a distância tinha uma grande importância, pois não era o mesmo de acabar a impressão numa oficina em Portugal e na mesma tarde ser entregue na distribuidora. Para ajudar, a distribuidora da editora faliu e feriu de morte a Meribérica. Esta suspendeu as publicações e ainda fez umas tentativas de recuperação, mas sem o retorno das vendas nem tendo acesso ao material distribuído, era difícil cumprir com os deveres para com as gráficas, acabou por se desativar.
As Lendas japonesas foram interrompidas.
Com este triste final da editora, terminam também, mas alegremente, estes artigos que já vão longos.
José Ruy

6 comentários:

  1. Além de felicitar José Ruy por esta excelente série de artigos, fruto de uma erudição notável, de uma paixão sempre viva pelo seu trabalho e pela BD e de uma memória prodigiosa, capaz de evocar com precisão os mínimos detalhes, quero agradecer-lhe as referências amigas à minha pessoa, como chefe de redacção da 2ª série das "Selecções BD". Confesso que, tantos anos depois, já não sou capaz de me recordar de algumas peripécias vividas nesse período com a mesma nitidez do José Ruy, mas do que nunca me esqueço é das pessoas que trabalhavam na redacção (embora fizessem também outras tarefas), dos nossos colaboradores externos e da amizade que me ligou (e ainda liga) a alguns deles. Foi nessa mesma época que tive o privilégio de conhecer e de conviver também de perto com o Eduardo Teixeira Coelho, que veio algumas vezes a Portugal, depois de longos anos de ausência, para desfrutar a amizade dos seus inúmeros admiradores portugueses e as calorosas homenagens que lhe foram feitas. Uma delas, talvez a mais importante e significativa, no Festival Internacional de BD da Amadora.

    Quanto a José Ruy, recordo-me também vivamente das suas visitas à redacção, do intenso convívio que tivemos nessa época, dos seus projectos – um deles, como aqui ficou registado – de retomar as suas magníficas "Lendas Japonesas", que eu sempre considerei uma obra-prima, dos seus conselhos, das suas opiniões críticas lúcidas e serenas, apoiadas numa sólida experiência profissional, do seu talento e da sua modéstia, da sua profunda amabilidade e simpatia, qualidades que já vêm de longe e que continuam a distingui-lo nos contactos pessoais e nas actividades a que com tanto fervor ainda se dedica, em prol de uma arte que muito lhe deve: a BD portuguesa.

    Foi graças aos seus bons ofícios que as "Selecções BD" puderam apresentar algumas histórias inéditas de E.T. Coelho, reproduzidas a partir dos originais que o grande Mestre radicado em Florença pôs generosamente à nossa disposição e que nunca tinham visto a luz da publicidade em nenhuma outra revista. Coube também às "Selecções BD" (e a mim próprio) a honra de o ter entrevistado pela primeira vez, quebrando uma espécie de lenda ou de "tabu", segundo os quais ETC era avesso a dar entrevistas e a sair do seu isolamento profissional. Que isso não era verdade já se tinha visto nas suas anteriores visitas a Portugal, em que confraternizou abertamente com todos os fãs que quiseram conhecê-lo e cumprimentá-lo.

    Resta-me esperar, voltando a José Ruy, que ele complete um dia a 2ª série das "Lendas Japonesas" (de que as "Selecções BD" publicaram, se não estou em erro, dois belíssimos episódios) e augurar os maiores êxitos a uma carreira que continua a dar bons frutos, assente numa imensa, direi mesmo, inesgotável capacidade de trabalho, num entusiasmo que não esmorece e num talento que pode pedir meças ao dos maiores mestres da BD mundial, pois José Ruy é não só um autor completo, que cria os seus argumentos, escreve, desenha, pinta e legenda (e ainda por cima dá conferências), como tem também uma longevidade de fazer inveja aos poucos que podem disputar-lhe o título de desenhador mais activo do mundo.

    Um grande abraço para o Mestre ilustre e para a equipa do BDBD, que felicito também pela qualidade e pelo interesse sempre evidenciados nos seus trabalhos.

    Jorge Magalhães

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    1. Caro amigo Jorge Magalhães, não posso deixar de responder aos seus comentários, mas sem parecer que estamos a «trocar galhardetes». O melhor que aproveito deste meu trabalho em tantos anos, é a amizade que se tem consolidado com todos os intervenientes nas publicações, e o Jorge Magalhães é um dos principais.
      Tudo tem acontecido com fluidez, nunca procurei alcançar algo, pelo contrário, tudo tem vindo ao meu encontro, como a ligação com o Mestre Eduardo Teixeira Coelho e a amizade que aconteceu entre nós. O Jorge diz bem, quanto à lenda criada sobre o feitio do ETCoelho. Alguém, para se evidenciar, lançou esse boato para que o contacto com o Mestre fosse filtrado sempre por intermédio dessa pessoa. O facto dele não se evidenciar, procurando a publicidade, não quer dizer que não gostasse de ser apreciado pelo seu trabalho. Porque razão ele rejeitou o primeiro convite feito por alguém para vir à Amadora receber o troféu? e só quando eu, anos mais tarde lhe expliquei que se tratava de um assunto sério e que mantinha entre nós muitos admiradores, o ETC cedeu em 1997 e ficou muito agradado com isso. É porque quando somos sinceros e desinteressados, conseguimos.
      Desejo de muita saúde e continuação do seu bom trabalho, como à Catherine Labey.
      Com amizade
      José Ruy

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  2. Meu querido amigo Jorge Magalhães, que bom podermos continuar a contactar e a recordar episódios que vivemos intensamente. Fico desvanecido com as palavras de amizade que me dedica e que não mereço. Temos vindo, os dois, a arar um terreno pedregoso, mas que com esforço e determinação se vai transformando e consegue dar alguns frutos nas árvores entretanto aí plantadas. É a amizade sincera que nos dá força e ânimo para continuar. Do pouco que sei fazer, vou tentando melhorar. Foi por sua iniciativa que comecei a registar as vivências passadas em situações, que se perderiam se não fossem contadas.
    Obrigado, Jorge Magalhães, por ser meu amigo.
    Obrigado Carlos Rico e Luiz Beira por acolherem os meus escritos no BDBD Blogue.
    José Ruy

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  3. Desconhecia o paradeiro dos originais dessa maravilhosa obra Ragnar, que pessoalmento coloco ao nível do Príncipe Valente do Foster. E que pena tenho que tal obra prima esteja fechada num cofre e não haja ninguém, nenhum editor que se abalance a fazer umz edição digna da obra ao nível da que M Caldas está a fazer com o PV aproveitando o facto de Mestre José Ruy e Jorge Magalhães ainda estarem disponíveis para supervisionarem esse projecto. Imagino até no entusiasmo que provavelmente a Gulbenkian poderia patrocinar Se calhar estou a delirar mas seria algo extraordinário com um potencial enorme no mercado europeu ou quiçá mesmo a nível mundial. Saudações ao Mestre José Ruy e ao veterano e amigo Jorge Magalhães.

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  4. Caro amigo Jorge Magalhães, não tenho palavras para agradecer as suas referências ao meu trabalho, que faço por gosto e devoção. A comunicação é importante em todos os seres vivos, e as Histórias em Quadrinhos são um perfeito meio para o conseguir.

    Respondendo agora ao caro Amâncio: a sua sugestão de edição do Ragnar de ETCoelho, posso adiantar-lhe que neste momento um editor está a tratar de reeditar essa série, e utilizará os originais conservados no Bunker da Bedeteca da Amadora para a reprodução, conseguindo assim uma melhor definição do traço do Mestre. Torço também para que seja para breve, como está programado.
    A sua sugestão de patrocínio é muito válida, transmitirei ao corajoso editor.
    Forte abraço e obrigado pelo comentário.
    José Ruy

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  5. Embora com grande atraso, este comentário ao que escreveram Amâncio e José Ruy no BDBD, há cerca de quatro meses, serve para manifestar também o meu entusiasmo pela eventual reedição, em português, do "Ragnar" de E. T. Coelho. Oxalá esse projecto não fique pelo caminho... como ficou o da Meribérica, que apenas conseguiu publicar um álbum, depois do acordo feito com ETC, e reproduzido de uma obra já editada pela Futura.
    O "Ragnar" é uma série muito extensa e exigirá um enorme esforço financeiro para a reeditar na íntegra, caso haja boa aceitação do público. Esperemos que sim, que todos os sonhos se concretizem, e que esta magnífica série (de que, até agora, só há três episódios publicados em Portugal, respectivamente no Cavaleiro Andante, n'O Falcão e no Mundo de Aventuras) venha preencher uma lacuna, que nunca se fez tanto sentir, no tocante a obras clássicas de autores portugueses em que os leitores mais jovens nunca puseram os olhos.
    É certo que José Ruy continua a produzir, a um ritmo incessante, numa labuta diária e meritória que chega a ter algo de titânico... mas muitas das suas obras mais antigas merecem também ser reeditadas, sobretudo aquelas que continuam a manter um interesse artístico, didáctico e cultural (e são muitas).
    Um forte abraço, com enorme admiração, para o Mestre conceituado, que começou a sua carreira sob o incentivo e os conselhos de outro grande Mestre, precisamente E.T. Coelho.
    JM

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