sábado, 25 de julho de 2015

ENTREVISTAS (19) - LUÍS AFONSO


Luís Afonso (Foto: Miguel Madeira)
Luís Afonso é um dos mais reconhecidos cartunistas portugueses da actualidade.
Nasceu em Aljustrel, em 1965, estudou em Lisboa mas reside em Serpa.
Depois de formar-se em Geografia, abdicou da carreira de docente para se dedicar por inteiro à publicação de cartunes e tiras BD na imprensa.
A partir daí, nunca mais parou de produzir "bonecos", em jornais e revistas como o Diário, Diário do Alentejo, A Bola, Público, Público Magazine, Grande Reportagem, Sol ou Jornal de Negócios, até ultrapassar os 20.000 cartunes publicados!
Apesar deste número astronómico, todos sabemos que a qualidade do seu trabalho não esmoreceu. Pelo contrário. Parece que, cada dia que passa, reforça o seu estatuto, deixando provavelmente a Sr.ª Merkel a pensar com os seus botões: "Este tipo é tão produtivo que até parece alemão!"
Em compensação, muitos portugueses pensarão: "Este tipo é tão produtivo que nem parece alentejano!"
Desafiá-mo-lo para uma entrevista, sem pressas e sem qualquer compromisso quanto a datas para nos dar as respostas. Não por ele ser alentejano, claro, mas de modo a deixa-lo à vontade e não prejudicarmos o seu plano de trabalho diário.
A verdade é que, apenas duas semanas depois, aqui está a entrevista do Luís Afonso. Fresquinha, portanto, para combater o calor que se faz sentir.
Aproveitem-na bem.


BDBD - Tens o curso de geógrafo mas ganhas a vida a fazer cartunes e tiras de Banda Desenhada. Como surgiu esta "mudança de direcção" na tua carreira?
Luís Afonso (LA) - Aconteceu por acaso. Sempre desenhei as minhas histórias de BD, mas como hobby. No primeiro ano de faculdade, em 1984, publiquei uma BD num suplemento de um jornal. Quando lá fui buscar as pranchas originais, no princípio de 1985, perguntaram-me se não queria fazer um cartune semanal, coisa que eu nunca tinha pensado, eu nem ligava muito a cartunes, confesso. Experimentei e desde essa altura nunca mais parei.

BDBD - Quando é que sentiste que, verdadeiramente, eras um cartunista e que era isso que querias fazer na vida? Foi um sentimento que te acompanhou logo que publicaste os primeiros desenhos ou foi aparecendo gradualmente, até encetares a tempo inteiro por essa actividade?
LA - Talvez só me tenha sentido verdadeiramente cartunista quando percebi que tinha de optar entre dar aulas de Geografia e trabalhar a tempo inteiro nos cartunes. Foi em 1993, quando comecei no Público. Como já colaborava n’ A Bola e na Grande Reportagem, começaram a ser coisas a mais, porque a profissão de professor é muito desgastante com as aulas, a preparação das aulas, a correcção dos testes, as inúmeras reuniões de professores, do Conselho Pedagógico, etc, etc. Ainda consegui conciliar dois anos, mas abandonei o ensino em 1995. Fiquei com pena, mas vou matando saudades quando me convidam para ir a escolas.

BDBD - Quem opta por fazer cartune tem sempre algumas referências que o acompanham para sempre. Quem foram, ou são, os cartunistas que mais admiras, que te despertaram o “bichinho” e te fizeram pensar em seguir-lhes os passos?
LA - Como te respondi atrás, comecei a fazer cartunes por acaso, sem estar ligado minimamente a esta área. Portanto, para o melhor e para o pior, comecei sem referências nenhumas. Conhecia o que toda a gente conhecia: a Mafalda, os Peanuts, o Mordillo, mais nada. Em Portugal só conhecia o Sam, do "Guarda Ricardo", porque na minha terra (Aljustrel) ia todos os dias a uma sociedade recreativa que tinha o Diário de Notícias na sala de leitura. E eu lia o Sam, mas sem me passar pela cabeça vir a fazer aquilo no futuro. Conheci-o mais tarde e, já numa perspectiva de jovem cartunista, admirava bastante o seu trabalho. Foi sem dúvida quem mais me marcou, sobretudo pela arte de fazer cartunes com a prevalência do texto. Foi uma grande responsabilidade ocupar o lugar que ele deixou no Público.

BDBD - Como te surgem as ideias para os cartunes? É algo que nasce espontaneamente ou requer da tua parte muito tempo de pesquisa e de concentração?
LA - Depende dos casos. Tanto me pode surgir uma ideia de repente como ter de andar um dia inteiro a pesquisar notícias na net para trabalhar. Mas a actualidade é tão fervilhante que às vezes tenho mais trabalho a decidir sobre qual a ideia que vou utilizar no cartune do que propriamente a encontrar uma.

BDBD - Qual foi o projecto, ou a série, em que trabalhaste que mais prazer te deu até hoje?
LA - É difícil dizer qual foi o projecto/série que me deu ou dá mais prazer, de uma forma ou de outra tenho tido prazer nos vários projectos e séries em que tenho trabalhado. Desde o Barba e Cabelo, com o qual consegui pôr uma tira diária sobre desporto/futebol na imprensa, o que não era nada comum na imprensa desportiva, e que já tem mais de 25 anos...
"Barba e Cabelo", in jornal "A Bola"

...passando pelo Bartoon (que continua a ser um desafio estimulante todos os dias, desde 1993)...
"Bartoon", in jornal "Público"

...até à tira SA (2003), no Jornal de Negócios, que me permitiu entrar a fundo no mundo da Economia e Finanças numa altura em que o Mundo tem atravessado a maior crise económica e financeira dos últimos cem anos. 
"SA", in "Jornal de Negócios"

...E há os outros projectos, como o Lopes, o escritor pós-moderno,  que começou na Grande Reportagem em 1991...
"Lopes, Escritor Pós-Moderno", in "Grande Reportagem"

...a série de animação A Mosca, que foi transmitida durante seis meses na RTP 1, em 2014... 

...ou a tira RIbanho para o Diário do Alentejo, em que eu fiz os textos e tu os desenhos durante cerca de 10 anos, até 2012.
"RIbanho", in "Diário do Alentejo"

BDBD - Tens algum tema que nunca tenhas trabalhado em que gostasses de pegar?
LA - Assim de repente, não me ocorre nada. Se calhar até já peguei em coisas a mais.

BDBD - Disseste-me um dia que gostas mais de escrever do que desenhar. No entanto, só tens um livro publicado (“O Comboio das Cinco”). Tudo o mais (e não é pouco) são argumentos para cartunes, tiras ou pequenas bandas desenhadas de poucas pranchas. Porquê?
LA - Já acabei um segundo livro só de texto. São seis contos e, em princípio, será lançado ainda antes do fim do ano pela Abysmo, que já me editou “O Comboio das Cinco”.  E já estou com mais projectos a esse nível. Como sabes, e tu tens conhecimento directo, cada vez me dá mais gozo escrever.

BDBD - Como se conseguem fazer dois ou três cartunes por dia, sete dias por semana, durante anos a fio? Isso não é viver em permanente "stress"?  Deve haver alturas em que estejas, porventura, sem inspiração, ou de férias, ou ocupado com qualquer imprevisto que possa surgir, ou por outra razão qualquer, e não te surjam ideias facilmente… Como resolves essas situações?
LA - Tenho de trabalhar todos os dias. Dantes ainda arriscava fazer meia dúzia de cartunes adiantados para ir passar uns dias de férias, mas não dá resultado: a actualidade é frenética de mais e não tem contemplações com atrasos na abordagem dos acontecimentos. Percebi que era pior retomar o trabalho do que continuar a fazê-lo, mesmo de “férias”. Assumi que trabalho todos os dias e não deixo de sair por isso. A minha família habituou-se a que eu trabalhe todos os dias. Felizmente a tecnologia actual permite-me fazer isso, consigo ler a informação e enviar os cartunes de qualquer parte.

BDBD - Tens ideia (ainda que por alto) de quantos cartunes já publicaste até hoje?
LA - De certeza mais de 20.000, talvez 25.000.

BDBD - Há alguns anos, dizias numa entrevista que esta actividade é muito desgastante e que o cartunista consome muita energia enquanto pensa e realiza o seu trabalho. Consegues ver-te, daqui por vinte anos, a fazer o mesmo que fazes hoje - dois ou três cartunes por dia - ou sentes que, com o tempo, terás, irremediavelmente, que abrandar o teu ritmo?
LA - Sinto que não devo fazer previsões porque podem falhar. Assim como as dos economistas. Mas ver-me vivo daqui por vinte anos já não era mau.

BDBD - Como vês a situação actual do cartune de imprensa em Portugal?
LA - A situação mantém-se tristemente estável. Somos praticamente os mesmos de sempre. É pena não haver espaço na imprensa para aparecerem novos nomes.

BDBD - A que achas que isso se deve?
LA - Há dois motivos, um interno e que vem de trás, outro externo e mais recente. O primeiro tem a ver com o facto de os jornais portugueses nunca terem tido a tradição de manter nas suas páginas vários cartunistas em simultâneo, ao contrário do que se passa noutros países. Tu pegas num grande jornal francês, inglês, norte-americano, brasileiro ou espanhol e encontras vários autores a coexistir, cada um com o seu estilo. Estar lá um não impede que estejam outros, como estar um colunista não impede que estejam outros. Aqui em Portugal há no máximo dois cartunistas por jornal. É o caso, por exemplo, de A Bola. Estou lá eu e o Ricardo Galvão. Ele mais virado para a caricatura e cartunes puramente gráficos, eu dedicado às tiras/cartunes onde predominam as palavras. Dois estilos completamente distintos e compatíveis. Mas o Ricardo não faz todos os dias e nos países que referi há vários cartunes por jornal todos os dias, portanto são realidades que nem se aproximam. Em tempos defendi a ideia de que os prémios para cartunes, em vez de servirem só para premiar os consagrados (eu fartei-me deles, deixei de participar já há uma dúzia de anos e mesmo assim tenho uma gaveta cheia de estatuetas horrorosas que não mostro a ninguém) deveriam apostar na revelação e publicação de novos talentos. O prémio pecuniário, em vez de se destinar a um veterano, serviria para manter um espaço semanal (ou diário, se o dinheiro fosse suficiente) num ou mais jornais para publicar novos autores. Desses, os que se destacassem poderiam ser convidados a trabalhar nesses jornais. Era uma forma de deixar que o talento aparecesse (porque ele existe, só que não tem espaço para se mostrar). Quanto ao outro motivo, o externo, é a crise que a imprensa atravessa, com o aparecimento da informação gratuita na internet, ainda por cima agudizada pela crise económica, o que faz com que, mesmo que o primeiro motivo não existisse, fosse difícil para os jornais contratarem mais autores.

BDBD - Que conselho dás a um jovem que queira iniciar-se nesta  carreira?
LA - Que pense duas vezes antes de se iniciar. Não, três.
CR 


"Histórias Invertebradas", in "Público Magazine"
"Barba e Cabelo", in jornal "A Bola"
"SA", in "Jornal de Negócios"
"Bartoon", in jornal "Público"
"Humor Ardente", in jornal "A Bola"
"Lopes, Escritor Pós-Moderno", in "Grande Reportagem"
"Lopes, Escritor Pós-Moderno", in "Grande Reportagem"
"O Sol aos Quadradinhos", in jornal "Sol"

2 comentários:

  1. Mais uma excelente entrevista com um dos maiores cartoonistas português.
    Este espaço geográfico precisa de imensos cartoonistas com tanto que há para "brincar".

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  2. Caro Mico,
    Tem razão quanto ao Luís Afonso ser um dos maiores cartunistas portugueses.
    Quanto ao resto, como pode constatar pelas respostas do Luís, matéria-prima para trabalhar há. O problema é a falta de oportunidades.
    Tenhamos esperança que as coisas mudem.
    Obrigado pelo seu comentário.
    Saudações bedéfilas,
    Carlos Rico

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