Publicamos hoje a segunda e última parte da entrevista que Manuel Caldas concedeu ao nosso blogue. Podem (re)ler a primeira parte clicando aqui.
Manuel Caldas |
MC - Essa história é um mito. O próprio José Ruy, que já tantas memórias escreveu sobre o Coelho, nunca a tal se referiu. E está suficientemente bem documentado como aconteceu o processo de sucessão do Foster. Eduardo Teixeira Coelho seria sem dúvida um bom desenhador para o Príncipe Valente, mas não acredito que o quisesse ser, e se, por força de quaisquer circunstâncias, acabasse por sê-lo, de certeza que com o seu individualismo não saberia sujeitar-se a trabalhar subalternizado. O melhor sucessor do Foster teria sido o José Luis Salinas, mas o José Luis Salinas dos anos 30 a 50.
Prancha de Ragnar, por E.T. Coelho |
MC - A influência é apenas superficial, na estrutura da prancha e na ausência de balões. Mas até isso muda por completo depois das primeiras 168 pranchas, que, valorizando-as ainda mais, são de formato maior. Aproveito para dizer que tenho todas essas pranchas e o projecto de as publicar em três volumes – assim Cristina Teixeira Coelho o permita e o fim dos tempos não esteja próximo.
BDBD - Como se processou a substituição de Foster, quando este se retirou? Ele teve algum papel na escolha do desenhador que o substituiu? Houve outros candidatos ao lugar, para além de John Cullen Murphy? Fale-nos um pouco acerca disso...
MC - Quem escolheu o seu substituto foi o próprio Foster, entre John Cullen Murphy, Gray Morrow e Wallace Wood .Entregou a cada um deles o esboço de uma prancha diferente e decidiu-se por Murphy, por considerar admirável a forma como desenhava mãos. Foi uma má escolha, digo eu, e, apesar de a maioria da gente a quem tal interessa considerar que Wood seria melhor, eu ficaria, sem hesitar, com Morrow. Nunca com Wood, nem com Murphy.
BDBD - A parceria entre Murphy e Foster funcionava como? Foster escrevia o argumento e deixava depois a Murphy liberdade para executar a prancha, ou dava-lhe indicações precisas acerca de como queria que este a desenhasse?
MC - Foster escrevia o texto (nalguns casos, na sua época de semi-reforma mas nunca antes dela, a partir de histórias criadas por Bill Crouch Jr.), fazia um esboço muito grosseiro de como pretendia que fosse a prancha com as suas vinhetas, escrevia também uma breve descrição de cada uma destas e a partir disso tudo Murphy fazia o seu trabalho, com considerável liberdade criativa. Quando era introduzida uma nova personagem, Foster fazia também desenhos pormenorizados do seu aspecto físico e, se necessário, do traje. Tudo isto e muito mais, está documentado em "Foster e Val". No final, era também Foster a colorir as pranchas desenhadas por Murphy.
BDBD – O Príncipe Valente é uma série “perfeita”, ou também tem coisas que não lhe agradam totalmente? Haverá, por exemplo, algo que Foster pudesse ter escrito ou desenhado melhor, na sua opinião?
MC - Não, não é perfeita, claro. Que eu tal
diga, não tem de surpreender, mas talvez surpreenda dizer eu, precisamente eu,
que há coisas absolutamente irritantes no Foster. Por exemplo: há muitas
vinhetas com partes da anatomia humana absolutamente mal desenhadas, de uma
deselegância flagrante, culpa de ele evitar o uso de modelos. E, mesmo sendo um
apaixonado por cavalos, nunca desenhou correctamente a sua dentição. Também
sempre foi irritante o soberbo desprezo pela coerência na representação dos
adereços que se repetem em sucessivas pranchas, e às vezes dentro da mesma
prancha.
Hal Foster desenhando Príncipe Valente |
MC - Quando Foster começou, em 1937, o balão
já fazia parte do código da linguagem da banda desenhada há mais de 40 anos, e ele conhecia-o
perfeitamente (na sua infância lia os Katzenjammer
Kids e até fez bandas desenhadas – que ainda existem – com balões).
Portanto, não creio que hoje acabasse por usá-lo. Por outro lado, apesar de só
usar legendas didascálicas, sempre foi comedido na quantidade de texto.
Provavelmente, uma página do Blake et
Mortimer de Jacobs tem três ou quatro vezes mais texto do que uma do Príncipe Valente. Não creio que Foster
hoje seria um Foster diferente, nem que precisasse de o ser. Afinal, a sua obra
sempre foi e continua a ser reeditada, continuamente e em vários países. Até na
Rússia actual!
BDBD - Se tivesse conhecido, um dia, Foster pessoalmente, o que lhe teria dito?
MC - “I’m Prince Valiant fan number one in all the
world.”
BDBD - Por motivos que não interessarão aqui focar, o Manuel Caldas deixou de poder publicar a obra-prima de Foster em Portugal e passou a editá-la (com natural sucesso) em língua castelhana. Depois de tantos anos de trabalho e dedicação a uma causa, essa foi uma situação que o entristeceu, ou encarou isso como um ponto de partida para se dedicar a outros projectos que, porventura, não teria pensado publicar no nosso país?
MC - A ganância está sempre ligada à
estupidez e aquele que partilha com outro uma galinha de ovos de ouro mas
decide roubar-lhe a sua parte até poderia continuar rico se a acarinhasse; não
compreendendo isto, tudo perde. A edição portuguesa, estupidamente levada à
falência por quem quis ser seu único senhor sem estar minimamente categorizado,
deixou-me obviamente entristecido (mas não o suficiente para que me faltassem
as energias para apresentar o caso em tribunal) e também significou um enorme
abalo económico. Mas, sim, o meu afastamento dela acabou por ser impulso para
outros projectos. A edição portuguesa poderia hoje estar mais do que
completada, fazendo felizes os editores, a distribuidora e o público. Assim não
sendo, todos, todos mesmo, ficaram a perder. E para o público foi uma absoluta
falta de respeito.
BDBD –
Posta de lado a possibilidade de publicar Príncipe
Valente em português, encetou a publicação de outras séries clássicas
norte-americanas... O que tem a BD americana de tão especial em relação a
outras escolas como a franco-belga, por exemplo, que tanto o atraia?
Capa de Foster e Val |
BDBD - Por ser um profundo conhecedor de Príncipe Valente, o Manuel Caldas tem publicado, ao longo dos anos, vários textos sobre o assunto, mas numa obra como a de Foster, nunca estará, porventura, tudo dito. Tem planos para editar mais algum artigo de fundo (como em Foster e Val, por exemplo) ou crê que não seria viável outra edição desse tipo?
MC - Não, há sempre coisas a dizer sobre
qualquer coisa, mas eu não tenho vontade de escrever nada mais. Mesmo o Foster e Val só o escrevi porque via que
ninguém se decidia a fazê-lo. Por isso é que a primeira versão do livro é
bastante pobre, dada a minha imaturidade de então (ainda estava na casa dos
vintes!). Aliás, eu tenho cada vez mais dificuldade em escrever bem seja o que
for.
Capa de A Lei da Selva |
na ideia editar, futuramente, outros clássicos portugueses ou, por ora, essa opção não se coloca?
MC - Nenhum editor publica
clássicos da banda desenhada portuguesa se não quer perder dinheiro. Foi por puro
amor à arte (e, vá lá, também por alguma vaidade: a de mostrar como se publica
de forma ideal certas obras) que fiz a referida edição, com 500 exemplares de
tiragem e preço de capa de 12 Euros. Passei quase dois meses a trabalhar
aturadamente nela. Alguém acha que se vão esgotar os 500 exemplares? Só para
pagar o custo da impressão seria preciso vender nas livrarias 350 exemplares (a
distribuidora entrega ao editor 40% do preço de capa), mas alguém acha que se
vão vender? Eu não espero tal coisa, mas tinha de fazer essa edição.
Quando um crítico ou divulgador
censura um editor por não publicar os clássicos portugueses, desculpem-me que
lhe diga: não sabe o que diz!
Portanto, sim: gostaria de
publicar mais clássicos, mas não tenho nada planeado. A menos que experimente
fazê-lo em print-on-demand, que não exige nenhum investimento significativo e
com o qual não se perde dinheiro. É algo em que ando a pensar.
BDBD - Que projecto gostaria de terminar que ainda não tenha, sequer, começado?
MC - Bem pensados, o meu livrinho de
projectos tem mais de uma dúzia. Não vale a pena revelá-los, até porque mais
importantes do que esses são aqueles que já comecei, e que são bem uma meia
dúzia. De qualquer modo, os interessados em boas edições de obras de outros
tempos, da banda desenhada e não só, têm já bastantes edições minhas ao dispor.
Dêem uma olhadela em: www.manuelcaldas.com.
Manuel Caldas visto por Paco Nájera |
MC - Parece-me que a tendência é ler-se cada vez menos banda desenhada. Sem dúvida. Só espero que, entretanto, não me falte público suficiente para continuar a viver do que faço. Espero morrer antes disso, ou ao menos não morrer por causa disso.
BDBD - Muito obrigado, Manuel Caldas, pela sua disponibilidade. Apesar desta entrevista se ter revelado bem extensa, fica desde já combinado que voltaremos a conversar de novo um dia, pois outras questões interessantes ficaram por lhe fazer... Até lá, então!
CR
Notas:
Os interessados em adquirir as publicações da "Libri Impressi" podem consultar a sua página oficial http://www.manuelcaldas.com/ onde encontrarão toda a informação necessária (títulos disponíveis, formas de pagamento, contacto do editor...). Vale a pena uma visita, até porque, como diz Eduardo Martínez-Pinna Vallejo, "(...) são obras feitas por e para amantes de banda desenhada. Se estás entre eles, não podes perde-las."
As fotos de Manuel Caldas que ilustram esta entrevista foram retiradas do blogue As Leituras do Pedro do nosso colega Pedro Cleto, a quem agradecemos a gentileza.
A caricatura de Manuel Caldas foi retirada, com a devida vénia, do blogue autoresdecomicaricaturizados do excelente caricaturista espanhol Paco Nájera.
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