sexta-feira, 24 de outubro de 2014

A VIDA INTERIOR DAS REDAÇÕES DOS JORNAIS INFANTO-JUVENIS na memória de José Ruy (1)

O BDBD orgulha-se de estrear hoje uma rubrica, que tem a particularidade de ter como autor dos textos um nosso colaborador e amigo, José Ruy, nome grande da banda desenhada portuguesa, que, curiosamente, já aqui foi entrevistado.
Numa casual troca de e-mail's, lançámos o repto a este autor para que nos falasse um pouco sobre a sua experiência nas redacções dos muitos jornais infanto-juvenis por onde passou e José Ruy acedeu, com toda a disponibilidade e prontidão, a esse desafio, contando-nos algumas das suas memórias que, de outro modo, provavelmente se perderiam no tempo.
Agradecemos-lhe por isso, em nosso nome e em nome de todos os que, ainda hoje, recordam com saudade «O Mosquito», o «Cavaleiro Andante« ou o «Diabrete», revistas que faziam as delícias da rapaziada nos anos 30, 40, 50 e 60. 
Esta será, também, uma oportunidade única para os que se interessam pela história da BD portuguesa, já que este conjunto de artigos (quinze no total, ao ritmo de aproximadamente um por mês) lhes permitirá perceber um pouco melhor como eram produzidos estes e outros títulos que tanto sucesso fizeram entre a pequenada daquela altura.  
Comecemos, então, pelo jornal mais emblemática da BD portuguesa: «O Mosquito».


1 - COMO ERAM POR DENTRO AS REDAÇÕES DOS JORNAIS INFANTIS
por José Ruy

Uma das perguntas que tenho ouvido fazer com alguma frequência por quem se interessa em saber mais sobre publicações periódicas para jovens, é de como funcionavam as redações, quais os prazos exigidos aos autores para a entrega dos originais e como era o ambiente nessas verdadeiras fábricas de sonhos.
Posso relatar a minha experiência do que vivi no interior de algumas dessas redações. Comecemos por um jornal infanto-juvenil, particularmente especial e fascinante, que fez história, para além das que publicou: «O Mosquito».

Anúncio publicado no Diário de Notícias descoberto por Leonardo De Sá
e Capa do n.º1, reprodução de Catherine Labey.

A redação era integrada na sua própria oficina e em edifício próprio, melhor dizendo pertença da família do Tiotónio, na Travessa de São Pedro n.º 9 em Lisboa. É certo que a primeira redação deste mítico jornal funcionou provisoriamente na Travessa das Pedras Negras, n.º1 na Litografia Castro onde era impresso. No entanto o Raul Correia (Avozinho) e o António Cardoso Lopes (Tiotónio), diretores literário e artístico, realizavam «O Mosquito» na Amadora onde residiam em moradias geminadas.
Tiotónio e Raul Correia
O Tiotónio deslocava-se à oficina ao fim da tarde, para entregar os originais e desenhar as cores diretamente nas chapas de zinco Offset, depois de terminar a sua função na entidade bancária onde era funcionário.
A correspondência dos leitores era dirigida para a morada do Tiotónio, na Amadora, que a entregava depois ao Raul Correia que respondia no jornal e por vezes mesmo diretamente pelo correio.
Havia também o «Correio da Ti’réne, secção de meninas» dirigido pela irmã mais velha do Tiotónio, Irene Cardoso Lopes, que tratava de bordadinhos para os vestidos das bonecas. Esta secção saiu muito poucas vezes. Só muito mais tarde a irmã mais nova, a Mariana Cardoso Lopes viria a dirigir «A Formiga» com uma periodicidade marcante.
O jornal começou por ser distribuído pela Empresa Nacional de Publicidade detentora do Diário de Notícias. No natal de 1936, no primeiro ano de publicação, saiu um número especial com 20 páginas pelo mesmo preço, 5 tostões, mas com alguns dias de atraso devido a «uma avaria na máquina impressora», segundo explicação dada no próprio número, mas que teria sido, isso sim, pelo acréscimo de 12 páginas às 8 habituais, pois a máquina era lenta e não correspondia ao que lhe exigiam.
Durante três anos o jornal foi ampliando as vendas, obrigando a um aumento crescente da tiragem, praticamente de número para número. No início fora utilizada uma velha máquina com 60 anos já, plana e marginada à mão, quer dizer que o papel era metido folha a folha, por operários especializados, exemplar por exemplar. Quando a tiragem aumentou de 5000 exemplares para 15000 tiveram que passar a impressão para outra máquina mais «moderna» ou melhor dizendo, não tão velha como a anterior. Mas a procura nas bancas de venda era cada vez maior, os assinantes aumentavam e «O Mosquito» atingiu os 15000 exemplares. Passou a ser impresso noutra máquina, a mais rápida da oficina.
Mesmo assim não dava vazão e começaram a surgir problemas de resposta por parte da gráfica, não conseguindo entregar o número de exemplares correspondentes a uma semana.
Saía com um ou dois dias de atraso, mas o público era fiel e esperava a continuação das aventuras com ansiedade e interesse.
A primeira...

...a segunda...

...e a terceira máquinas que na Litografia Castro imprimiram «O Mosquito»

O Tiotónio e o Raul Correia procuraram uma outra gráfica que tivesse capacidade para imprimir o jornal a tempo e horas, mas as que existiam na zona de Lisboa só conseguiriam cumprir os prazos se não aceitassem mais trabalhos de outros clientes, o que significava ocuparem as máquinas a tempo inteiro tornando impraticável o orçamento, que ao subir já não permitia manter o preço de capa de «cinco tostões», metade de um escudo, um dos grandes trunfos do êxito da publicação.
Nessa altura tiveram uma proposta da Empresa Nacional de Publicidade, a sua distribuidora, de aquisição do jornal ficando à mesma os seus diretores com a responsabilidade da edição, mas transformando-se em «assalariados» da Empresa. As condições apresentadas não agradaram ao Tiotónio nem ao Raul Correia.
A famosa impressora Rolland
Então pensaram a sério em montar oficina própria e adquirirem uma máquina muito rápida que conseguisse fazer a tiragem no tempo desejado e pudesse acompanhar a sua possível subida. Foi escolhida por catálogo uma impressora Offset, novo modelo acabado de lançar, a última palavra da marca alemã Rolland. Imprimia numa hora o que as outras máquinas existentes no parque gráfico nacional conseguiam num dia, seis mil exemplares. Em 1939 a redação começou então a funcionar em edifício próprio com as oficinas englobadas.
Foi nesse espaço que tive a felicidade e a oportunidade de trabalhar, a partir de 1947, na seleção manual das cores e também na parte artística depois que o Manuel Velez (irmão do António Velez, autor da maior parte das construções de armar) partiu para a África.
A bancada onde desenhava as cores de «O Mosquito», na janela que dava para a Rua dos Mouros, no Bairro Alto, e a mesa onde o Baptista Moreira montava o jornal. De pé, O Tiotónio.

Vou então contar como funcionava essa redação integrada na oficina.
A instalação abrangia várias divisões de uma antiga casa de habitação que foi perfeitamente adaptada à função.
(Continua)

No próximo artigo: A PLANTA DA REDAÇÃO 

Nota: Apesar de os textos do BDBD não obedecerem ao novo acordo ortográfico, por discordarmos dele, os textos de José Ruy serão publicados segundo as regras desse acordo, por opção do próprio autor.

4 comentários:

  1. Sou obrigado a escrever pelo novo acordo, embora não esteja de acordo, porque os livros que faço são para ser lidos pelos jovens que estão a aprender por esta maneira de escrever o português. Para não me baralhar, escrevo então tudo desta maneira. Até ver.
    Abraço
    José Ruy

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    1. Caro José Ruy,
      Compreendemos perfeitamente a sua tomada de posição sobre o assunto, atendendo às razões evocadas.
      Contudo, para nós continua a ser incompreensível que a língua de um país seja alterada por decreto...
      Não há ninguém que me convença que "fato" é o mesmo que "facto", que "seção" é o mesmo que "secção" ou que "Egito" é o mesmo que "Egipto" (a propósito, como se escreverá "egípcios" no novo acordo? Não quero acreditar que seja... "egícios"...)
      Um grande abraço
      Carlos Rico e Luiz Beira

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  2. Quero felicitar vivamente a redacção do BDBD por esta iniciativa, cujo interesse histórico e documentalista é escusado realçar. Como é que O Voo d'O Mosquito não se lembrou disto? :-)
    Parabéns também a Mestre José Ruy pelos seus 70 anos de ininterrupta carreira, em que tantos e tão relevantes serviços prestou à Banda Desenhada, às artes gráficas e à cultura deste país. E votos de que essa intensa e profícua actividade se prolongue por muitos anos ainda.
    Abraços para todos,
    Jorge Magalhães

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    1. Amigo Jorge Magalhães,
      Obrigado pelas felicitações mas o seu a seu dono: as felicitações são todas para Mestre José Ruy que, para além de ter uma "memória de elefante" se disponibilizou, de imediato, a colaborar connosco! E de uma maneira espantosa: já cá temos os catorze artigos e respectivas imagens, prontos a serem postados. Só que, atendendo a tantas rubricas e assuntos que temos no BDBD (e que também já estão prontos a entrar), só poderemos publicar um artigo por mês. Mas talvez assim, aos poucos, se possam saborear melhor estes temas.
      Um grande abraço
      Carlos Rico e Luiz Beira

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