BDBD - Como surge a ideia de primeiro fazer e depois publicar o "Giraldo"?
JP - O Giraldo (ou Geraldo), posso dizer que é a BD da minha vida, não pelo tema em si, mas pelo percurso enorme que ainda me acompanha. Fascinado pelo lirismo e romantismo medieval de Évora, decidi um dia dedicar-lhe uma banda desenhada e a lenda do Giraldo pareceu-me um bom ponto de partida. Teve várias versões até chegar à que se publicou, já com uma história melhor construída, baseada na lenda mas também numa eventual realidade histórica. Quando o Jorge Magalhães viu os originais gostou bastante e propôs a história à direcção da Editorial Futura.
BDBD - Conte-nos um pouco acerca do processo de realização deste álbum: quanto tempo demorou com ele, que dificuldades encontrou, que apoios teve, como escreveu o argumento, como se documentou...
JP - Nunca ilustrei ou pintei com rapidez. Gosto de levar o tempo que é necessário, sem stress. Se reparar no ano da minha assinatura nas vinhetas compreende que não criava muitas pranchas por ano. Em paralelo, pintava, estudava, namorava, trabalhava... O Geraldo muitas vezes tinha de esperar. Para me documentar, passei muitas horas na Biblioteca Pública de Évora e falei com alguns historiadores.
Reuni-me com alguns amigos que me ajudaram a iniciar o argumento. No final do álbum é publicado um apontamento histórico que reflete parte desse auxílio. A história de “Ramiro” por William Vance é talvez a que mais me influenciou na criação do Geraldo. Para além dos amigos que já referi, tive o apoio do Jorge Magalhães que aceitou dar um aspeto final ao meu guião criando o argumento final.
BDBD - Porque é que, após a publicação desse álbum, em 1985 ou 1986, nunca mais ouvimos falar de si (pelo menos no que toca à banda desenhada)? Afastou-se voluntariamente ou foi obrigado a isso?
JP - Com vinte e três anos, muito desmotivado pela Escola Superior de Belas Artes e desejando criar planos para uma vida minimamente estável, receber 25 escudos por exemplar de álbum-BD não era nada promissor. Em paralelo à BD, a ilustração e pintura da vida selvagem começaram a dar fruto. Por sugestão de um amigo filatelista que gosta muito do meu trabalho, e que tinha feito parte da criação do Clube Eborense de Banda Desenhada, procurei a Direcção de Serviços de Filatelia dos CTT. Propuseram-me a primeira emissão filatélica, em 1986, sobre Aves da Madeira. Foi o início da minha carreira como ilustrador filatélico, um percurso mais seguro e independente, que ajudou a organizar a minha vida como ilustrador e pintor de natureza.
BDBD - A ilustração de natureza, com pinturas para livros, selos, quadros... é uma área que lhe dá tanto prazer quanto a BD ou, se pudesse escolher, optaria pela banda desenhada?
JP - A paixão pela BD persiste, mas a motivação pela conservação da natureza foi mais forte. De 1980 a 1990, foi uma década determinante para o meu trabalho como ilustrador de natureza. Em 1986 integrei o Serviço Nacional de Parques e publiquei a minha primeira emissão filatélica. Estes dois acontecimentos proporcionaram-me contactos, viagens, amigos e conhecimentos, que contribuíram muito para aquilo que me tornou conhecido como ilustrador e pintor de natureza. Em Lisboa faltava-me o espaço e a natureza, já não aguentava mais. Conseguir manter o emprego, a atividade como artista plástico e voltar para a província foi muito stressante. Sou uma pessoa muito emocional. Necessito de sossego. Não gosto de solidão, mas gosto de estar e trabalhar sozinho. Em 1990, fiquei doente e solicitei uma licença sem vencimento por tempo indeterminado. Levei muitos anos, com altos e baixos, para me recuperar. Não queria regressar à função pública. Em 1998, por altura de Expo 98, tinha muito trabalho. Mas, nos anos seguintes, a ilustração analógica passou a ter grande concorrência da ilustração digital. Comecei a ter muito pouco trabalho e a dedicar-me mais à pintura e a exposições. A pintura é um processo muito lento, não é rentável, a não ser que os valores se tornem exorbitantes e, mesmo assim, se estiver seis meses a pintar um quadro pelo valor mensal do vencimento mínimo nacional, nem todos os clientes estão dispostos a investir no trabalho, a não ser que compreendam o que está por trás, o que representa e o valor da criatividade. Com muita relutância e para não perder o vínculo, regressei à administração pública, algo que ainda hoje tenho muita dificuldade em aceitar. É um perfil que não me encaixa, sinto-me preso, mas é um mal necessário à minha sobrevivência e da minha condição familiar.
BDBD - E, no entanto, o "bichinho" da banda desenhada nunca saiu de si, curiosamente... Como surge a ideia de reeditar o Giraldo, com mais páginas e argumento revisto e actualizado? Não ficou totalmente satisfeito com a primeira edição ou há dados novos acerca desta personagem?
JP - A forma como vejo agora a história de Geraldo já não tem a mesma fantasia inicial. Hoje, com cinquenta e nove anos, vejo Geraldo como um mercenário ambicioso, implacável, pronto a jogar com as duas faces da moeda pra obter o que desejava. Este tipo de personagem, embora característico e notável na sua época, não tem nada que ver comigo ou com o que desejo para a humanidade ou para o planeta. Infelizmente, ainda temos muitos Geraldos entre nós, que são cópias fiéis da barbárie medieval. Quando decidi retomar, falei com o Jorge Magalhães e o Geraldes Lino. Como era de esperar, ficaram extremamente motivados. Mas os atentados terroristas aumentaram e começaram a distorcer até a história da invasão islâmica e reconquista. Interrompi novamente. Nalguns períodos históricos sobre a invasão islâmica da Península Ibérica também se viveu em paz entre o Islão, Judeus e Cristãos. Devemos bastante a esses períodos que possibilitaram a troca de valores científicos e culturais entre as diferentes religiões e culturas, que são atualmente reconhecidos como património da humanidade. Reeditar o Geraldo para ser objecto de fundamentalismo não está no meu horizonte. Por isso, se avançar, quero ter bastante cuidado com a forma imparcial e factual como vou retomar toda a história, procurando um tratamento especial para as cenas de violência. O que prevejo é continuar a visão do homem, não do herói, mercenário, ambicioso, mas um homem que sobrevive como pode e não tem religião, tanto ostenta a Cruz como o Crescente. Tal facto custar-lhe-á a vida em Marrocos, onde termina a sua jornada.
BDBD - Sendo um álbum que se centra num personagem histórico, que tanto diz a Évora, nunca houve interesse, por parte da autarquia eborense, por exemplo, de patrocinar uma reedição?
JP - Respondo-lhe com o seguinte ditado: “os santos da casa não fazem milagres”. E também não sou eu que os procuro. A cultura e a arte em Évora sempre foram muito elitistas e eu não gosto de elites. Se algum dia esta história chegar ao fim, tenho tempo de me preocupar com a sua edição. Se for necessário, edito-a em Espanha. Tenho boa relação com Olivença, onde fiz a minha última exposição de pintura. A história do Geraldo, se avançar, vai deixar de se concentrar na conquista de Évora mas sim na vida (com bastante ficção) do personagem.
BDBD - Uma curiosidade que me ocorreu agora: sendo o José Projecto um ilustrador que domina perfeitamente a utilização da cor no seu trabalho, na BD optou sempre pelo preto e branco. Porquê?
JP - Adoro a cor, mas também adoro a ilustração a preto e branco principalmente em BD. Depende do ilustrador, há artistas que desenham para a cor, no preto e branco, sente-se a falta dela e há outros em que a cor adicionada só estraga. Na escola italiana de ilustradores do personagem “Tex Willer”, existem excelentes artistas a preto e branco. A cor não faz lá falta. Fabio Civitelli é um bom exemplo do que estou a afirmar.
JP - Adoro a cor, mas também adoro a ilustração a preto e branco principalmente em BD. Depende do ilustrador, há artistas que desenham para a cor, no preto e branco, sente-se a falta dela e há outros em que a cor adicionada só estraga. Na escola italiana de ilustradores do personagem “Tex Willer”, existem excelentes artistas a preto e branco. A cor não faz lá falta. Fabio Civitelli é um bom exemplo do que estou a afirmar.
BDBD - Estando tão ligado à ilustração de Natureza, nunca aconteceu fazer uma BD focando esta temática?
JP - Sim, tenho duas páginas sobre um lince. Deixo aqui as reproduções.
BDBD - Continua a manter contacto com a "Tribo da BD", de alguma maneira? Qual a sua relação com esta forma de arte nos dias que correm?
JP - É praticamente nula. De vez em quando troco e-mails com a Chaterine Labey, viúva do Jorge Magalhães, e quero enviar um e-mail ao Esteban Maroto para saber se está bem. Trocámos de e-mails uma ou duas vezes e gostei muito.
JP - Na divulgação da primeira parte desta entrevista recebi o apoio de vários amigos, a quem agradeço profundamente, mas houve um em particular que me comoveu e tocou no principal motivo que, ao longo de todos estes anos, me moveu como ilustrador. Não foi o dinheiro, carreira, ou ambição. Apenas o amor à ilustração, a vontade de partilhar a fantasia e imaginação, fazer parte desse mundo, dessa variante artística.
José Gaspar foi meu colega na administração pública. Agora aposentado, temos afinidades desde que nos conhecemos, mas muito pouca convivência. Surpreendeu-me com o seu comentário, do qual transcrevo um excerto, que me fez sentir bastante realizado ao optar por esta vida nada fácil que é ser ilustrador em Portugal:
«A minha personalidade e vivência criança/adolescente construiu-se à volta de "figuras" como Kit Carson, David Crockett, Buffalo Bill, Daniel Boone, Tarzan, Major Alvega, grande fã do Fantasma e tantos outros. Também era leitor assíduo do "Mundo de Aventuras".
Alguns destes, como vi agora, tiveram capas desenhadas por ti. Portanto, de alguma forma és responsável pelo mundo maravilhoso e pelo universo de sonhos em que me construí.
Já ganhei o dia!
Forte abraço.»
A todos os que me apoiam e acompanham ao longo da minha carreira como ilustrador, em particular aos que amo e me são mais próximos, o meu muito obrigado.
«A minha personalidade e vivência criança/adolescente construiu-se à volta de "figuras" como Kit Carson, David Crockett, Buffalo Bill, Daniel Boone, Tarzan, Major Alvega, grande fã do Fantasma e tantos outros. Também era leitor assíduo do "Mundo de Aventuras".
Alguns destes, como vi agora, tiveram capas desenhadas por ti. Portanto, de alguma forma és responsável pelo mundo maravilhoso e pelo universo de sonhos em que me construí.
Já ganhei o dia!
Forte abraço.»
A todos os que me apoiam e acompanham ao longo da minha carreira como ilustrador, em particular aos que amo e me são mais próximos, o meu muito obrigado.
BDBD - Muito obrigado nós, José Projecto, por esta entrevista.
JP - Obrigado também, pelo interesse no meu trabalho e convite para a entrevista, trazendo boas lembranças de outros tempos. Espero ainda ter oportunidade para nos conhecermos pessoalmente e de retomar este maravilhoso mundo da BD, onde a fantasia se confunde com a realidade.Nota: as imagens são copyright de José Projecto
CR
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