terça-feira, 19 de maio de 2020

A INFLUÊNCIA DA CENSURA NAS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS, EM PORTUGAL (2) - por José Ruy


Continuamos a contar a minha experiência quanto à censura que nos anos 1950 era aplicada nas publicações infantojuvenis.
Para quem se interessa por este tema, aconselho vivamente a leitura da tese de doutoramento de Ricardo Pinto Leite, um sobrinho do Roussado Pinto. É um trabalho muito rigoroso, exaustivo e proficuamente documentado, o melhor que se fez até hoje em Portugal sobre o assunto.
Pois quando estava a acabar a história em quadrinhos de «O Bobo» de Alexandre Herculano, no «Cavaleiro Andante», pensei desenhar a seguir a «Peregrinação» que, entretanto, o ETCoelho me aconselhara. Comprei na antiga Livraria alfarrabista A Barateira os sete volumes da obra e fiquei apaixonado.
O Teixeira Coelho, uns anos antes, em 1952, havia feito duas páginas dessa obra de propósito para a primeira exposição de HQ em Portugal, que organizáramos no Palácio da Independência, mas não dera seguimento e, ao partir para França, disse-me que não a continuaria e para eu meter mãos à obra. 

Apresentei a ideia ao Simões Müller, o diretor da revista, que torceu o nariz.
Devo explicar que esse autor era considerado «maldito» pela censura e nem sequer o davam em leitura nas escolas, sendo um clássico. Isso pelo facto de ele afirmar que tinha feito pirataria na China, o que não se coadunava com a imagem do português suave que era preciso dar a conhecer às novas gerações.
Eu ia insistindo, mostrando que era uma boa história de aventuras, passadas no Extremo Oriente e, por isso, com todo o exotismo ambiental.


Mas o Müller achava que se eu queria fazer uma história desse género tinha os «Fumos da Índia», que, no seu ver, era inócua quanto ao «lápis azul».
A publicação de «O Bobo» aproximava-se do fim e eu continuava a insistir na «Peregrinação», destacando ao diretor as partes históricas nobres da narrativa, e que funcionaria como divulgação junto da juventude desse clássico, por intermédio da HQ. Avancei com algumas páginas e mostrei-lhe.
Por fim acabou por ceder, embora receoso.
A partir desse momento comecei a construir a figura do «herói» por imaginação, pois de todos os seus retratos nenhum é da época. E a autocensura começou a funcionar. Mendes Pinto foi um marinheiro do século XVII, que passou por muitas tempestades no Mar da China e sofreu grandes naufrágios. Ora o seu aspecto seria de um homem barbudo de muitas semanas, sem ver terra nem ter descanso no mar.
Mas essa imagem aproximar-se-ia do «pirata padrão», que nos era fornecido pelas histórias inglesas e pelo cinema norte americano, de barba hirsuta e até de pala no olho. Isso alertaria a censura para ver à lupa como «descambaria» essa bonecada, sobre uma figura já proscrita, e poderia, por isso, ser cortada, pura e simplesmente. 
Então criei esta personagem imberbe e de aspeto simpático.

Realmente nunca incomodaram o jornal durante a publicação, talvez até porque o diretor era bem quisto e confiariam nele para nunca deixar publicar algo que colidisse com as normas. Efetivamente, as apreciações sobre Mendes Pinto eram absurdas, pois ele foi embaixador dos governadores de Goa e Malaca em muitas situações delicadas na China, era comerciante e quando o seu navio foi assaltado por piratas e resolveu queixar-se ao responsável na região, este aconselhou-o a fazer o mesmo. Olho por olho.
E em todo o desenrolar da história no «Cavaleiro Andante», que durou 75 semanas, mantive-o com bom aspecto, a bem da sua reputação.
Censura, a quanto obrigavas!

Fernão Mendes Pinto em certa altura, descreve na sua obra as ações de um seu companheiro, António de Faria, e atribui a ele atitudes menos ortodoxas da narrativa. A esse, já coloquei barba e a matar o pirata Coja Acem, num duelo feroz. Mas sem deixar de ser um bom cristão.
Era preciso «dançar» conforme a música, mas criando novos passos de dança trocando o passo quando era possível.

No próximo artigo: outra ação da censura na saída do país. Não das histórias, mas…

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