domingo, 11 de outubro de 2015

A VIDA INTERIOR DAS REDAÇÕES DOS JORNAIS INFANTO-JUVENIS na memória de José Ruy (12)


12) O «TINTIN» PORTUGUÊS

Em 1968 por iniciativa de Jaime Mas, o catalão filho de Francisco Mas da Editorial Íbis, iniciou-se a publicação em Portugal de uma revista congénere da «Tintin» belga. A editorial Íbis e a editora Livraria Bertrand eram sócias e nessa altura eu trabalhava nesta última fazendo capas de livros e publicidade às edições, incluindo cartazes para decorar as montras das várias lojas que possuíam, espalhadas pelo país.
Capa do primeiro número da revista "Tintin"
O material incluído na revista era de origem belga e francesa, reunindo o melhor que então se fazia de Histórias em Quadrinhos nesses países. Tinha como diretor o Jaime Mas e como chefe de redação o Dinis Machado, que foi ocupar na Íbis o lugar do Roussado Pinto que fora abrir uma editora própria.
Esta revista impôs-se pela qualidade gráfica e pela criteriosa escolha das histórias, num cuidadoso equilíbrio dos temas, o que levou a ser considerada pelos editores belgas a melhor de entre as muitas com o nome «Tintin» editadas na Europa e mesmo em outros continentes.
Na distribuição da colaboração, deixaram 20% do espaço nas páginas da revista para ser preenchido com histórias feitas em Portugal, e foi convidado o Vítor Péon para preencher esse espaço, que logo no número 1 e em página dupla publicou «A 1.ª Travessia Aérea do Atlântico Sul». Estamos a falar, claro, da proeza de Sacadura Cabral e Gago Coutinho num voo sobre o Oceano até ao Brasil.
O Dinis Machado na nota de apresentação disse mesmo que a revista teria também «acontecimentos e figuras da História de Portugal».
Página dupla de Péon na sua melhor fase. Como foi scanerizado de um volume encadernado, nota-se o
ressalto do medianiz devido à dobra, "comendo" um pouco de desenho e letras.
Uma página e parte de outra onde Péon começou a preencher a rubrica com a nossa ligação
com África, primeiro no tempo dos Descobrimentos e depois nas campanhas militares do Séc. XIX 
Essa rubrica foi sendo preenchida com episódios dos lusitanos, Cristóvão Colombo, Pedro Álvares Cabral, até que, no n.º 19, O Péon destacou o Infante Don Henrique. E depois as campanhas em África no século XIX. Aí os belgas não gostaram pois estavam a acontecer grandes alterações nesse continente relativamente a independências e lutas contra o colonialismo. A Bélgica perdera o seu chamado «Congo Belga» e Portugal encontrava-se em plena guerra em África. Alarmados com a reclamação vinda da Bélgica os administrativos do jornal em Portugal entraram em pânico e para apaziguar os seus «maiores» resolveram o problema desta maneira: «Matando o bicho morre a peçonha». Acabaram com o espaço destinado à presença portuguesa preenchendo-o com mais material estrangeiro.
Assim o Tintin transformou-se numa revista totalmente franco-belga traduzida para a nossa língua.
As legendas eram todas desenhadas, como se havia convencionado internacionalmente (mas nem sempre cumprido) que os textos da banda desenhada precisavam de ser igualmente desenhados. Como eram muitas páginas a publicar semanalmente e o Mário Correia, nessa altura já grande profissional de «rotulação» e funcionário da casa, não podia sozinho dar vasão, foi necessário criar uma equipa.
Compunha-a o Mário Correia, o Teixeira Abreu orientador gráfico da Íbis, o Luís Nazaré funcionário da Bertrand e sobrinho do Aníbal Nazaré, que era autor de textos para revistas teatrais, o Strompa, nessa altura montador de Offset nas oficinas da Editora Bertrand e eu. Eu era dos mais fracos a legendar.
Foi necessário que acertássemos o desenho da letra de modo a que não se notasse diferença de umas páginas para outras. Todos tínhamos de trabalhar na mesma dimensão, o mesmo recorte e a mesma espessura da letra.
Fomos obrigados a um treino intenso e tomando por padrão o tipo de letra usado pelos franco-belgas.
Entretanto a editora decidiu também publicar álbuns com as histórias completas em paralelo com a revista, e as respetivas rotulações tinham de ser executadas num curto espaço de tempo. Levávamos para casa um desses álbuns com 44 páginas à sexta-feira para entregarmos tudo pronto após o fim-de-semana. Dividíamos então as páginas pelos cinco e não poderia haver diferença significativa na escrita.
Caneta Rotring que funcionava com uma tinta própria, mais diluída para poder escoar-se nos seus tubos finíssimos que funcionavam como aparos. Porém, para conseguirmos uma maior opacidade no traço,
carregáva-mo-las com tinta-da-china, o que entupia os tubos, obrigando a frequentes
lavagens e perda de tempo. Mas tinha de ser assim... 
As legendas eram executadas sobre papel vegetal, com canetas «Rotring» carregadas a tinta-da-china para ficar mais preta, sobre as páginas originais francesas ou belgas e tinham de caber nos espaços de origem, pois não havia hipótese de se mexer nos balões ou nos desenhos.
Esses vegetais eram montados sobre os fotólitos do desenho a preto cedidos pelas editoras estrangeiras e gravados nas chapas Offset, para a edição em português.
Se a tinta não ficasse bem negra, falhava na passagem à chapa. Também não se admitiam rasuras, e se nos enganávamos tínhamos de reiniciar tudo nessa página, pois qualquer raspagem, corte e colagem ficaria marcado sobre o desenho original. Era verdadeiramente um trabalho sem rede que exigia ficar pronto à primeira.
O facto é que criámos uma homogeneidade tal, que por vezes não sabíamos definir quais as páginas que tinham sido legendadas por nós próprios.
A revista tinha publicidade, alguma de página inteira, para desespero do Dinis Machado que achava estar a retirar ao leitor a possibilidade de ler mais uma aventura. Foi quando entrou em cena a «Agência 2000», de um francês radicado em Portugal.
Começou a mentalizar a administração e principalmente a redação em criar uma publicidade em forma de Quadrinhos, contando uma história. Para ser a agência a encarregar-se desse trabalho, ficaria mais caro do que recebiam do anúncio, por isso lembraram-se de mim, pois fazia parte dos quadros da editora com um ordenado fixo. Até me dava prazer e assim criei e desenhei uma série de pequenas historiazinhas, algumas para produtos da Thibaud, agência publicitária da «Fima Lever» dirigida pelo Telmo Protásio. Foi o primeiro contacto que tive com o que viria a ser, 6 anos mais tarde, o criador e proprietário da Meribérica/Liber.
Saíram várias historiazinhas destas onde a publicidade era bem aceite
pois continha ela própria uma aventura. 
Mas o Dinis Machado lutava para conseguir na revista umas páginas extra onde pudesse anunciar aos leitores as histórias seguintes.
Tanto insistiu com a administração que acordaram incluir 4 páginas, como se fosse um suplemento, em papel inferior ao do resto da revista e impressas só a preto. Chamou-lhe «Tintin por Tintin» e reuniu aí a secção de respostas às cartas dos leitores «Tu Escreves Tintin Responde», artigos sobre os autores franco belgas que o Vasco Granja traduzia do francês. Deu-me carta-branca para elaborar composições a anunciar as novas aventuras a publicar quando as anteriores iam terminando.
 (Continua)

No próximo artigo: A REDAÇÃO DO TINTIN, REALIDADE OU FICÇÃO?

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