sábado, 23 de março de 2013

ENTREVISTAS (11): FABRICE NÉAUD

Nascido em La Rochelle a 17 de Dezembro de 1968, Fabrice Néaud, estudou Artes e Filosofia. Ligado à Banda Desenhada (onde consta uma série autobiogáfica) e ao Teatro, é também um empenhado paladino contra a homofobia. Conhecemo-lo em Novembro de 2012 no Festival de BD da Amadora, donde veio a resultar esta entrevista, onde conta de si próprio e das suas ideias.

BDBD - Quem é Fabrice Néaud, autor de BD?
Fabrice Néaud (FN) - Nasci em La Rochelle a 17 de Dezembro de 1968 e estudei durante quatro anos numa escola de Artes. Um ano após o último dos meus estudos, iniciei-me como autor de Banda Desenhada, por volta de 1992.
A minha primeira obra, "Journal 1" (Diário 1), foi publicada em 1996. Até 2002, mais três tomos se seguiram. Em 2012, surgiu "Nu-Men" pelas Éditions Quadrants, obra que estou a prosseguir para o segundo tomo.Também tenho narrativas em "colectivos", dos quais me orgulho de "Alex ou La Vie d'Après", com argumento de Thierry Robberecht, publicada pela associação bruxelense de prevenção Ex Aequo.
Há quatro anos que trabalho também para o Centro Dramático de Orléans, sobre uma "carta branca" renovável em cada temporada teatral, o que me proporciona uma criação transversal.

BDBD - Como desenhista, marcaste bem o teu "lugar ao sol" com a série autobiográfica "Journal". Uma obra plena de coragem, não é verdade?
FN - Honestamente, ao princípio, não pensava fazer alguma coisa de extraordinário. Longe disso! Para mim, era simples e evidente fazer e dever fazer esse trabalho. Desde logo, tinha necessidade de contar a minha vida, pelo menos um período da minha vida, ligada a uma história de amor bastante dolorosa e de a ancorar no quotidiano de uma cidade de província que se parecia muito com aquela em que eu então vivia. É sobretudo o terceiro tomo, mais desenvolvido que os outros, que exigiu que eu precisasse as apostas de uma autobiografia desenhada: as já descritas no primeiro tomo (história de amor, cidade de província), mas também as apostas sociais (a precaridade devido ao facto de querer viver como artista na província), a violência homofóbica e, sobretudo, a dificuldade de dever desenhar gentes arriscando-se a se reconhecerem e de tal não gostarem...

BDBD - E daí?...
FN - Na verdade, foi este ponto que me pôs mais problemas, até a privar-me de prosseguir este trabalho, com tanta gente pronta a me censurar o menor traço que poderia acusá-los (pelo menos, segundo eles). Com o tempo, parecia que tudo me agarrava de novo: a violência homofóbica, a malevolência das mentes provincianas que não suportam que se "afixem" a este ponto no seu território... Não é em vão que se possa dizer que esta "obra" está plena de "coragem", com efeito... para não se dizer que se tornou numa empreitada mais do que temerária, quase suicidária.

BDBD - Uma vez narrada a homossexualidade, isso é ainda uma situação amarga em França, mesmo em BD?
FN - Oh, sim! E desafio qualquer um que diga o contrário. Muitas pessoas, com certos jornalistas à cabeça, parecem querer pintar-nos um mundo BD cor-de-rosa e maravilhoso, onde todos os discursos são possíveis... mas é forçoso constatar que as narrativas de Banda Desenhada sobre este assunto, simplesmente não reflectem, de um ponto de vista estatístico, a realidade quotidiana e os factos. Mas aposto que a não-evolução é sobretudo devido à autocensura dos próprios autores e não a uma possível intolerância ou frieza dos editores sobre este tema.
Prancha de "Journal IV"
BDBD - Na tua obra, também tens outros estilos e outras ideias. Por exemplo "Nu-Men", que nos propõe um argumento e um traço numa linha bem oposta à que conhecíamos de ti. O que é que te entusiasmou para esta obra de alerta mundial?
FN - Estou a elaborar o segundo tomo de "Nu-Men", que se intitula "Quanticafrique". Aliás, estou um pouco atrasado neste projecto, devido ao meu empenho na luta local contra a homofobia... Mas sempre desejei fazer ficção científica. Realizo aqui esse velho sonho, de que gosto muito. Permite-me desenvolver mais temas que em "Journal". Pelo menos, de uma maneira mais geral e não unicamente através do filtro de um único narrador. De resto, aqui estou a ser muito (demasiado?) guloso... Há muitos personagens nesta história. Desenvolver tudo isto é verdadeiramente ambicioso. E difícil.
Prancha de "Guerre Hurbaine" (Nu-Men 1)
BDBD - Na tua opinião, "Trois Christs" (uma obra colectiva em que participas), é ou não um desafio controverso  ou polémico?
FN - A minha participação em "Trois Christs" é  muito modesta: seis pranchas a preto-e-branco num conjunto de cerca de oitenta pranchas a cores. Esta modesta participação indica que não participei na elaboração global da obra, se bem que estivesse ao corrente do que aí se ia contar, donde aderi consensualmente. Assim, se houve "controvérsia", não estou informado nem me meto nisso. Confesso que o meu trabalho "Nu-Men", é um desafio muito mais arriscado e audacioso, embora sem um êxito imediato. Por acréscimo, alimentei esta narrativa de preocupações sociais que me inquietam diariamente.
Prancha de "Trois Christs"
BDBD - Que pensas de Portugal e do Festival da Amadora?
FN - Só conheço o Festival pela edição de 2012, logo não posso falar dele. Mas fiquei encantado por ter participado. Achei a exposição sobre a autobiografia muito bela e a cenografia muito interessante. Foi num belo local, vasto, e fiz aí belos encontros. A equipa recebeu-me maravilhosamente. Já uma vez tinha estado em Lisboa, creio que em 1999, no mês de Maio. Estava então um belo tempo. Agora, estando menos belo, Lisboa é uma cidade magnífica, mesmo que eu não tenha tido tempo de a visitar como ela merece. Mas o director do Festival, Nelson Dona, proporcionou-me um dia quase inteiro, antes do meu regresso, para visitar os principais lugares. E fazê-lo em companhia de alguém que conhece a história da sua cidade e do seu país, é uma ocasião apaixonante. Uma recordação muito bela!

BDBD - Queres deixar uma mensagem aos teus leitores portugueses?
FN - Vi que havia obras de autores portugueses que eu desconhecia de todo. E excelentes desenhadores. Especialmente o trabalho de Ricardo Cabral, que é magnífico. Apercebo-me, em cada viagem que faço, da vastidão da minha ignorância... Para os leitores portugueses, só posso encorajar a que se enriqueçam como já fazem com tantos autores estrangeiros...
É certo que a tradução das obras é um freio às suas difusões... Fiquei bem admirado ao ser convidado para um país onde não estou traduzido, mas onde mesmo assim, tinha leitores. Também estou sempre espantado por ver que os franceses são menos abertos e menos curiosos ante os outros, quando se trata de se interessar pelo trabalho de autores que não são do seu próprio país! Tenho alguma vergonha, como francês que sou, de eu mesmo sofrer deste vilão defeito. Apenas posso saudar a abertura de espírito dos leitores portugueses.

NOTA FINAL: na bibliografia de Fabrice Néaud, constam "Journal" (4 tomos), "Trois Christs" (colectvo), "Le Monde Diplomatique en Bande Déssinée" (colectivo), "Alex ou La Vie d'Après", "Carabas", "Émile" e "Guerre Urbaine" (primeiro tomo de "Nu-Men").





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