No artigo anterior contei dos recursos às técnicas dos processos gráficos para resolver problemas surgidos na alteração do sistema de impressão do jornal, agora suplemento de revista.
O meu primeiro contacto com esta redação foi um pouco
estranha. Estava a elaborar uma história que destinava para "O Mosquito", uma
aventura passada em África, sobre um caçador em situações de perigo com tribos aguerridas,
quando o Diário de Notícias lançou o "Cavaleiro Andante".
Adolfo Simões Muller |
O Teixeira Coelho com quem nessa altura partilhava um dos vários ateliês que tivemos em conjunto, alvitrou-me que fosse ao novo jornal mostrar o trabalho, que ele achava já com nível. Além disso ali poderiam pagar melhor a colaboração do que n’O Mosquito, e teria mais projeção. Como tinha meia dúzia de pranchas prontas, fiz um rolo e fui ao Diário de Notícias procurar a redação do "Cavaleiro Andante". Subi ao segundo andar conforme me indicaram e deparei com uma pequena sala onde uma senhora se encontrava a uma secretária. Soube depois que era a Dr.ª Maria Amélia Bárcia, secretária do Dr. Simões Müller.
A capa de Fernando Bento no primeiro número do jornal |
Despedi-me e aguardei uma resposta. Passou uma semana sem
qualquer sinal, se sim se não. Deixei passar mais outra semana e comentei com o
Teixeira Coelho o estranho da situação. Pensei que tinham perdido o meu
contacto e resolvi ir até lá.
Quando entrei no gabinete onde se encontrava à secretária
a secretária do diretor, vi o rolo dos originais, no mesmo sítio, repousando no
maple conforme o havia deixado.
Apercebi-me de que o apelo feito para angariar
colaboração era uma coisa muito vaga, e passadas duas semanas nem sequer haviam
desembrulhado o meu material para terem uma opinião. No contacto que deixara
figurava o meu nome, que por certo conheceriam como colaborador d’O Papagaio e
da "Flama" durante alguns anos. Um jornal precisa estar atento ao que se faz na
concorrência, e antes de o "Cavaleiro Andante" já tinham editado o "Diabrete" e durante
muito tempo. Não eram novos no ofício.
A Dr.ª Maria Amélia Bárcia disse então que o Dr. Müller
ainda não tinha tido vagar…
Achei o facto inusitado, pelo menos deviam ter guardado
os originais e espreitar o pacote para ver se valia a pena. Delicadamente,
disse que precisava de fazer umas alterações, se podia levá-los de volta. Ela
disse logo que sim, parecendo-me até aliviada. Seria menos uma tarefa que tinha
para resolver.
O Coelho também achou o procedimento muito estranho e
ficou resolvido publicar a história n’O Mosquito: chamei-lhe «O Reino
Proibido».
Prancha de "O Reino Proibido" |
Exercia já funções nesse departamento gráfico enquanto a
revista não saía, quando numa manhã entrou na secção o Dr. José Gonçalves, dono
principal do jornal e grande entusiasta das Histórias em Quadrinhos,
impulsionador das publicações infanto-juvenis da empresa, principalmente de o "Cavaleiro Andante". Nessa altura encontrava-me a fazer histórias ilustradas nas
edições «Fomento de Publicações L.da» e o José Gonçalves quando me
viu perguntou-me à queima-roupa por que razão estava a fazer desenhos para a
concorrência e não para o "Cavaleiro Andante", sendo funcionário da casa.
Numa fração de segundo raciocinei que não podia dizer que
a minha colaboração não tinha tido interesse da parte da direção do jornal, e
ocorreu-me uma maneira airosa de sair da situação: o "Fomento de Publicações" pagava por prancha 250 Escudos
enquanto o "Cavaleiro Andante" pagava 200 Escudos. Apresentei essa questão como
motivo. O José Gonçalves retorquiu se era só por isso e me pagassem o mesmo,
estaria disponível para colaborar no jornal. Retorqui que sim, e então respondeu-me
que mais tarde passasse pela redação d’O Cavaleiro Andante.
Esperei a minha saída do serviço para então me dirigir à
redação que era no mesmo edifício, na Avenida da Liberdade em Lisboa, quando pouco
depois recebi uma chamada do Müller, se podia ir ao seu gabinete. Lá fui, com a
bata branca que todos usávamos no departamento gráfico e recebeu-me com sorriso
rasgado e mão estendida. O José Gonçalves havia-lhe falado de mim por isso
queria convidar-me a fazer uma história para um número especial do "Cavaleiro
Andante" a sair em breve.
A redação tinha mudado de gabinete para uma sala maior,
onde além da Maria Amélia Bárcia trabalhavam o Fernando Passos que escrevia
contos e fazia traduções, e o Artur Correia que desenhava para o suplemento
«Pajem». Era primo do chefe da sala de desenho do Diário de Notícias e fora este
que o colocara na empresa. Em boa altura.
Logo nessa noite comecei a pensar num argumento e resolvi
fazer a história de «Gutenberg» que foi aceite com agrado. Mas à cautela não
entreguei os originais enrolados…
A história
foi impressa alternando as páginas com duas cores e só uma. Ao lado, esse número
especial com a capa desenhada por Fernando Bento.
|
O verde na sua máxima intensidade (o desenho a traço) funciona
como um preto, mas nas meias-tintas que lhe sobrepusermos abre a cor, como se
pode ver na imagem do meio.
Na da esquerda, o verde/preto junto com o vermelho e quando
as duas meias-tintas se sobrepõem consegue-se um acastanhado; assim com duas
cores temos um resultado igual ao do Offset com três cores, o «preto», o vermelho
e o verde com castanho obtido pelas sobreposições.
Como consegui esses meios-tons? «Aguarelando» com uma
tinta especial, «Neococcina» sobre a película do fotólito onde estava
reproduzido o desenho só a traço. Noutra película branca fiz os meios-tons equivalentes
ao vermelho, manualmente sem intervenção fotográfica, e a cor forte, com
«fotopak», um produto muito opaco próprio para pintar sobre a película. Depois
foi tudo gravado no cilindro de cobre.
A partir desta história fiquei também colaborador
residente do próprio jornal semanário.
A base da colaboração era de origem franco belga e da
parte portuguesa havia o Fernando Bento, o José Garcês, o José Manuel Soares, o
Artur Correia e eu. Mas foram aparecendo outros desenhadores. Esta redação afigurava-se-me
fria, tudo era tratado à distância, não havia reunião com os autores para
debate dos temas a fazer nem uma estratégia de planificação, no entanto a força
do material importado mantinha o jornal em equilíbrio estável. A alma daquilo
tudo era o José Gonçalves, dele vinham as ideias que o Simões Müller punha em
prática. Este era um poeta, sonhador, delicado mas frio no sentido do
entusiasmo e entrega ao jornal, se compararmos com a redação de "O Mosquito".
A ideia de criar aquele jornal foi do José Gonçalves,
para escoar excedente de papel…
(Continua)
No próximo artigo: PORQUÊ E COMO FOI CRIADO O "CAVALEIRO ANDANTE"
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